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A crise europeia

O continente enfrenta a incerteza da continuação da guerra, a escassez energética, nova época de juros mais altos e uma inflação que ameaça a qualidade de vida

Foto: JOHN THYS / AFP
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A inflação na Zona do Euro alcançou, em junho, os 8,6%. Nove dos 19 países tiveram uma taxa acima dos 10%. Subitamente, regressou ao discurso político europeu a expressão “aumento do custo de vida”, linguagem que não se ouvia aqui há décadas. O Banco Central Europeu decidiu elevar as taxas de juro em 0,5%, aumento esse maior do que se esperava e que constitui também a maior alta nos últimos dez anos. Tudo indica, vai continuar. A época dos juros baixos parece estar a acabar. Ao mesmo tempo, a guerra continua na Ucrânia e a Rússia anunciou a redução do fornecimento do gasoduto Nord Stream 1 para 20% da sua capacidade. O preço do gás aumentou imediatamente. Enquanto isso, o primeiro-ministro inglês demitiu-se e a Itália decidiu ir para eleições. O horizonte europeu parece sombrio.

A crise italiana é um sinal muito surpreendente. A Itália é o país com a maior dívida na Zona do Euro e é também a sua terceira economia. O governo era liderado por alguém com prestígio nacional e internacional. No meio de tanta incerteza econômica, uma crise política num dos países mais importantes era tudo o que a Europa não precisava neste momento. A pergunta é, então, por quê? O que levou a coligação que sustentava o governo Mario Draghi a se dissolver?

Entrados na análise política, devo dizer que não acredito nas razões invocadas pelos partidos que, no Parlamento, retiraram apoio ao governo (o plano econômico foi considerado insuficiente, tendo um dos partidos da maioria alegado oposição ao novo incinerador de lixo urbano em Roma). A verdadeira razão da crise, creio eu, pode mais facilmente encontrar-se em um fator: pura e simplesmente, os partidos não querem ficar com o ônus das dificuldades econômicas que estão por vir. Apoiar um governo nacional sem que nenhum dos seus líderes esteja nele já é difícil. Mais difícil ainda é pedir que, nestas circunstâncias, enfrentem a crise da inflação, a crise da energia, a crise dos juros altos. O calculismo voltou a ganhar e a impor uma crise que, vista de fora, parece absolutamente irresponsável. Todavia, para além do significado que tem para a política italiana, esta crise me parece também um péssimo sinal do que aí vem para a Europa.

Agora vêm as eleições. E o que é absolutamente desconcertante é olhar para as pesquisas publicadas. Primeiro ponto, e para mim o mais importante – a maioria das sondagens dá o partido Fratelli d’­Italia­ na dianteira. Cerca de 24%. Esse partido é o descendente do Movimento Social Italiano, fundado por integrantes do partido fascista e só ele tem o direito legal de usar a tristemente célebre fiamma ­tricolore,­ o histórico símbolo do fascismo italiano. Há quatro anos, em 2018, essa legenda obteve 4,4% dos votos. Agora, em razão do declínio eleitoral da Lega e do Forza Italia, os outros partidos de direita, parte para as eleições colocado em primeiro lugar nas pesquisas. Aqui está uma coisa que nunca sonhei ver nos dias da minha vida.

Por outro lado, a esquerda vai dividida nestas eleições. O partido democrático, de centro-esquerda (o segundo nas pesquisas de opinião como uma intenção de voto próxima do primeiro), não se entende com o Movimento 5 Stelle, liderado por Giuseppe Conte, antigo primeiro-ministro, justamente por não concordar com a atitude deste de derrubar o governo. Seja como for, o que é mais perturbador é que pela primeira vez na história europeia do pós-Guerra, Giorgia ­Meloni, líder de um partido de extrema-direita, se apresenta como favorita ao cargo de primeira-ministra italiana.

A economia e a política sempre andaram de mãos dadas na realidade europeia, influenciando-se mutuamente. A Europa enfrenta a incerteza da continuação da guerra, a crise energética do próximo inverno, uma nova época de juros mais altos (apesar de tudo, nada que se compare com o Brasil) e uma inflação que ameaça a qualidade de vida dos cidadãos. Acresce ainda a tendência declinante do euro diante do dólar, cujas razões ainda não são claras, mas que podem ter a ver com a percepção negativa da evolução da sua competitividade e com as dificuldades que vai atravessar principalmente em duas áreas – a energia barata da Rússia acabou e as exportações de bens para a China não são o que eram. Enfim, as perspectivas não são animadoras. Todavia, se a economia europeia apresenta desafios, a política só parece agravá-los. Postas as coisas em perspetiva, em outubro o Brasil, estou convencido, dará o primeiro passo para se ver livre de um governo de extrema-direita. Na Europa, uma semana antes, no dia 25 de setembro, a Itália pode ser governada pelos descendentes políticos de Mussolini. O mal não se extingue, espalha-se. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1219 DE CARTACAPITAL, EM 3 DE AGOSTO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A crise europeia”

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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