Ricardo Buratini

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Professor licenciado da FACAMP e Secretário Adjunto de Energia da Secretaria Especial de Articulação e Monitoramento da Casa Civil.

Opinião

A crise do coronavírus e o neoliberalismo: o que está em questão?

Há medidas possíveis para enfrentar a crise econômica associada à pandemia, ao isolamento social e à longa paralisação da atividade?

Foto: Miguel Schincariol/AFP
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Para além do drama que assola a saúde pública mundial, o que mais assombra no debate sobre a pandemia é a força da racionalidade neoliberal. Com efeito, essa racionalidade se explicita claramente em inúmeras manifestações recentes e na própria pergunta mais insistentemente lançada nos últimos dias:“devemos parar ou não a economia?” Desacompanhada de outras considerações e questionamentos, essa pergunta já mostra, em si mesma, que não lutamos apenas contra uma pandemia, mas contra uma razão de mundo incompatível com um projeto humanista de sociedade.

Há medidas possíveis para enfrentar a crise econômica associada à pandemia, ao isolamento social e à longa paralisação da atividade? Quais seriam as melhores alternativas nesse sentido? Quais delas poderiam ser implementadas mais rapidamente? Quanto às medidas mais complexas, quais esforços deveriam ser feitos desde logo para viabilizá-las no menor prazo possível? A nosso juízo, é com esse conjunto mais amplo de perguntas que se deveria debater o tema da mitigação da crise. Isto porque, além de nos perguntarmos se a economia deve ou não parar, é preciso indagar o que é possível ser feito no âmbito econômico e político caso a paralisação e o isolamento mais duradouro se mostrem as alternativas mais seguras para poupar vidas humanas.

É certa a severidade dos efeitos econômicos da paralisação da atividade. Obviamente são seríssimos os efeitos econômicos de uma ampla interrupção da produção e de um prolongado isolamento social. Mas, por mais grave e complexo que seja o desajuste econômico, também é certo que a superação de qualquer crise econômica é sempre politicamente possível, podendo ser tão mais rápida e menos dolorosa quanto mais brevemente for estabelecido um novo consenso.

Historicamente testemunhamos que situações extraordinariamente graves quebram paradigmas, criam novos arranjos políticos e abrem espaço para soluções até então inimagináveis. De certa forma, não é isso que começamos a assistir no que se refere a atuação dos governos ultimamente? De fato, um grupo crescente de lideranças políticas, até aqui rendidas incondicionalmente à ortodoxia, tem surpreendido e já começam a adotar medidas heterodoxas agressivas nos últimos dias. Salta aos olhos nesse sentido o recente pacote alemão (que perfaz 1/3 do PIB do país!), a efetivação em vários países de programas expressivos de suporte financeiro para empresas, bancos e fundos de vários portes, bem como as rápidas aprovações de mecanismos de garantia de renda mínima ao amplo conjunto de pessoas expostas à crise econômica.

É fato que existem muitas resistências políticas ainda a dificultar a materialização e ampliação dessas iniciativas em vários países. É fato também que vencer tais resistências em certas regiões (como no Brasil, por exemplo) ainda demandará tempo, mobilização e pragmatismo das lideranças responsáveis que ainda restam. Keynes nos advertiu que a verdadeira dificuldade não está em aceitar ideias novas, mas em escapar das antigas, mas ele mesmo, vale frisar, sempre foi um grande influenciador e um entusiasta do poder do convencimento. Ademais, se é fato que os tempos atuais parecem sombrios e desafiadores como os anos 30, também não se deve esquecer que situações de crise aguda quase sempre resultam em quedas de governos recalcitrantes e mudanças abruptas.

Vejamos agora a questão por outro ângulo. Considerando que muitas medidas não convencionais serão de fato implementadas (em maior ou menor grau) na maioria dos países, centremos agora nossa atenção nos questionamentos que têm sido levantados nos últimos dias em favor da maior parcimônia no uso dessas políticas. Obviamente são advertências que tentam justificar o abrandamento do isolamento social para minorar, desde logo, os “custos econômicos” da política anti crise. Caso obtenhamos sucesso inicial no aplainamento da curva de contágio, ou caso o tombo da economia se mostre muito mais pronunciado do que se espera hoje, não é razoável supor que questionamentos desse tipo ganharão muita força e novos adeptos? Sendo assim, vale a pena encarar a questão desde já. Mesmo porque, o percurso é revelador do que entendemos estar em questão na crise atual.

“Nossa luta contra o coronavírus é pior que a doença?” Foi com essa pergunta que o especialista em sistemas financeiros do Fundo Monetário Internacional (FMI), Rehman Shukr, começou um post que não ficaria tão famoso se não fosse pela trágica coincidência do autor ter falecido poucos dias depois, vítima da própria pandemia. No post, Rehman, de 26 anos apenas, escreveu: “Difícil decidir se o aspecto humano da doença é mais importante do que as suas implicações na economia e noutras áreas importantes. Muito fácil deixar a emoção guiar a política e já vimos várias vezes por que isso é uma má ideia”. 

A declaração de Rehman Shukr certamente não foi a única nessa direção. Rubem Novaes, presidente do Banco do Brasil saiu-se com o seguinte pensamento dias atrás: “Muita bobagem é feita e dita, inclusive por economistas, por julgarem que a vida tem valor infinito. O vírus tem que ser balanceado com a atividade econômica”. 

Vinda de onde vem (um ministro fiel a certo governante), esta última mensagem não surpreende. Mas para além de esperada, a fala revela algo mais profundo: revela, como tantas outras similares, que princípios de julgamento ancorados na razão neoliberal presidem as mentes dos especialistas, dos tomadores de decisão e dos governantes. Em síntese, reveladora é a ampla aceitação (e replicação em inúmeros outros posicionamentos similares) dos pressupostos subjacentes às duas falas transcritas acima. O que temos é, de um lado, a concordância (explícita ou implícita) de que é correto estabelecer uma separação (ou oposição) entre aspectos humanos e aspectos econômicos da crise (pressuposto de Shukr) e, de outro, a aceitação de que vidas têm um valor tangível como um ativo qualquer (pressuposto de Novaes).

A racionalidade neoliberal não deve ser confundida com a política econômica ou mesmo com a ideologia neoliberal. Como nos ensinou Michel Foucault, uma racionalidade é uma forma de governamentalidade do sujeito. No caso do neoliberalismo, é uma governamentalidade cujo objetivo é conduzir a conduta dos homens fazendo-os pensar a si próprios como empresas, como empreendedores plenamente responsáveis por seu destino ou, enfim, como meras frações de “capital humano”. A particularidade do neoliberalismo, portanto, estaria precisamente na transformação da lógica do mercado em lógica normativa generalizada, desde o Estado até o mais íntimo da subjetividade.

A hegemonia da razão neoliberal não é obra do acaso, mas de um longo processo histórico que encontrou apoio filosófico já de início na ética utilitarista. De fato, Jeremy Bentham já limitava o escopo de toda felicidade humana a uma coleção calculável e quantificável de prazeres e dores. Mas para que o cálculo pudesse ser idealizado e realizado era preciso, antes, reduzir toda a diversidade e tudo que é intangível a um mesmo denominador comum: a utilidade. A maior felicidade para o maior número! Essa é a síntese da ética utilitarista. Como bem descrevem Pierre Dardot e Christian Laval, através de um longo e tumultuado processo histórico, essa base filosófica se radicalizou na racionalidade neoliberal.

Agora não se trata tão somente de estabelecer, como no utilitarismo, um valor a cada vida e decidir ˗ sempre sob hipóteses precárias ˗ qual seria a melhor alternativa (isolamento vertical ou geral?) para garantir o mal menor ao maior número de pessoas no longo prazo. Na racionalidade neoliberal do ministro, dos especialistas e do mundo atual, cada indivíduo é apenas um ativo e não um sujeito portador de direitos inalienáveis. Supostamente possuidor de todos os meios necessários para participar da acirrada (e justa!) disputa concorrencial, cada sujeito é plenamente responsável pelo seu sucesso ou fracasso e seu valor é estabelecido nessa luta acirrada. Tal como uma empresa, seu capital (sua vida!) não tem valor infinito e não é qualitativamente distinto dos demais valores mercantis. E se por forças fortuitas da natureza ou da concorrência, esse capital humano, esse empresário de si mesmo, não resistir, há que se ponderar o esforço que o restante da sociedade precisará fazer para mantê-lo.   

Voltando à crise e ao momento histórico atual, é fundamental não esquecer que a pandemia, apesar de terrível, não foi responsável pela origem do mal estar em nossa sociedade globalizada/capitalista. Esse mal estar já era evidente na brutal expansão das desigualdades sociais, na inacreditável persistência da miséria e da fome, na indiferença ante à morte de milhares e milhares de excluídos sociais nas periferias do sistema, no problema climático que tanto ameaça a vida no planeta e na exaustão das democracias liberais – isso só para citar alguns exemplos de nossas odiosas e persistentes contradições.

Com a pandemia, ao que parece, chegamos a um ponto em que, ou mudamos profundamente a nossa razão de mundo (fortalecendo outra ética baseada no comum), ou manteremos nos próximos anos (e talvez com velocidade maior) a involução civilizatória que presenciamos no passado recente. É urgente aproveitar o grave momento de perplexidade em que nos encontramos para questionar a fundo qual razão de mundo (e quais compromissos éticos) deveriam reger as ações e as interações das instituições relevantes para ao menos iniciar uma mudança de fundo nas mesmas. Caso contrário, apenas voltaremos (ao igualmente insuportável) “normal”de antes tão logo se dilua a perplexidade acerca da pandemia. 

Felizmente nossa sociedade já atingiu alto grau de desenvolvimento tecnológico e material. Não precisamos mais, como sociedade, buscar desesperadamente o lucro máximo, aceitar com naturalidade formas de trabalho desumanas e alienantes, e muito menos manter o consumo desenfreado de bens supérfluos que ameaçam a biosfera. Tampouco podemos aceitar a gigantesca desigualdade de renda, riqueza e de oportunidades que se estabeleceu sobre nós. Nosso desafio hoje está muito mais em como aprimorar a cooperação e a distribuição do que em gerar novas riquezas estimulando a concorrência, elegendo vencedores e perdedores a todo tempo. Cada dia que se passa, a vida no planeta clama por mais solidariedade e moderação. Nunca foi tão óbvio, e a pandemia mostra isso claramente, que condutas baseadas exclusivamente em objetivos individuais e na lógica concorrencial são inconciliáveis, conflitantes entre si e potencialmente destrutivas para quase todos.   

Sabemos que a construção de uma nova razão do mundo e a reforma profunda das nossas instituições (governos, empresas, organismos internacionais, mercados, etc.) constituem objetivos muito mais complexos que a superação da crise gerada pela pandemia. Mudanças de racionalidade podem ser muito lentas e não dependem apenas de pensamentos e atitudes voluntaristas, sobretudo numa sociedade dominada pela cultura de massas, pela fragmentação e pela crise das instituições de representação política. Mas é nesses momentos históricos que temos a obrigação de ousar algo verdadeiramente novo e urgente. As janelas de oportunidade trazidas pela história também não devem ser negligenciadas e desperdiçadas porque o mal estar da nossa civilização é crônico e não acabará, mera e simplesmente, com o fim da pandemia. Não enfrentamos apenas um vírus terrível e suas inéditas consequências.

Enfrentamos o vírus e, junto com ele, uma crise civilizatória, uma crise do nosso tipo específico de sociabilidade, crise esta já há muito exposta. Essa crise não terá desfecho promissor se não aproveitarmos a oportunidade histórica que se coloca para ao menos tentarmos reconstruir as bases éticas de convivência e de orientação das nossas instituições. Enquanto continuarmos guiados pela racionalidade neoliberal, pela concorrência desenfreada e pelo cálculo econômico como principal critério de julgamento e ação, seguiremos sendo derrotados nas diversas batalhas contra outras tantas pandemias sociais.   

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