Amarílis Costa

Advogada, doutoranda em Direitos Humanos na Faculdade de Direito USP, mestra em Ciências Humanas, pesquisadora do GEPPIS-EACH-USP, diretora executiva da Rede Liberdade.

Opinião

A Cracolândia não sumiu, foi pulverizada

Sem moradia, sem emprego, sem tratamento contínuo, sem uma rede real de assistência, a cidade continuará produzindo novas Cracolândias

A Cracolândia não sumiu, foi pulverizada
A Cracolândia não sumiu, foi pulverizada
Dúvida sincera. A simples presença de policiais faz você se sentir em paz para circular nas ruas da Cracolândia? – Imagem: Paulo Pinto/Agência Brasil
Apoie Siga-nos no

A Cracolândia “sumiu”. Essa é a versão oficial, a narrativa limpa, higienizada. O enclave no centro de São Paulo amanheceu vazio, sem usuários, sem grades, sem fluxo – como se a dependência química tivesse evaporado do mapa urbano. Mas basta andar três quadras para perceber que o desaparecimento não foi milagre. 

O esvaziamento veio precedido de violência. Imagens obtidas pelo G1 mostram a Guarda Civil Metropolitana agredindo usuários com cassetetes, spray de pimenta, socos, chutes e ameaças. Comerciantes da região também foram alvo; um usuário contou ter tido a mochila arrancada e um revólver apontado para a boca. As imagens não mentem. Houve operação, não acolhimento. Houve dispersão forçada, não atendimento. Houve apagamento.

E quando os corpos somem do centro, reaparecem em Guarulhos, na Marechal Deodoro, no Glicério, no Terminal Princesa Isabel. O fluxo não acabou. Foi varrido como pó para debaixo do tapete. A prefeitura nega as remoções forçadas, mas os relatos se acumulam. As viaturas circulam, as abordagens se intensificam, e os usuários migram como quem foge de uma guerra que nunca foi oficialmente declarada, mas que é executada todos os dias.

A narrativa de “vitória” celebrada pela gestão municipal é apenas uma repetição com nova embalagem. Como eu disse no início do ano, o muro da Cracolândia é o espelho de uma cidade que prefere a indiferença. Agora, sem muro, mas com o mesmo projeto: tirar de vista o que incomoda. Apagar da paisagem o que não se quer resolver. E chamar isso de política pública.

Mas essa política tem nome: higienização social. E um objetivo de requalificar o centro para os grandes projetos urbanísticos – não para quem mora, vive e sobrevive ali. O tripé Moinho-Minhocão-Cracolândia forma um perímetro estratégico, onde tudo converge: expulsão de moradores, dispersão de usuários, valorização imobiliária. Como revelou a imprensa, o plano inclui uma nova sede do governo estadual e uma esplanada bilionária. O que se apaga com cassetetes, se ergue depois com gruas e concreto.

Essa cidade que apaga os pobres para mostrar progresso é a mesma cidade que transforma cadáveres ambulantes em justificativa orçamentária. Como bem descreve Achille Mbembe, vivemos sob uma necropolítica urbana, com corpos vivos tratados como mortos sociais. A Cracolândia é usada como desculpa para tudo: foi em nome dela que um vereador destinou verba para a compra de 20 fuzis para a GCM; é por causa dela que a Secretaria de Assistência Social mantém convênios com Organizações Sociais religiosas e repassa verbas aos montes; internações compulsórias, muros que crescem da noite para o dia. Além disso, é com ela que se justifica o Smart Sampa — projeto de vigilância em massa que consome bilhões enquanto não oferece nenhuma resposta estrutural para a população de rua ou para quem vive em situação de dependência química.

O mais perverso é a naturalização da tática. O desaparecimento dos usuários é tratado como êxito. A dispersão forçada vira “pacificação”. A cidade oficial comemora, enquanto centenas de pessoas em situação de extrema vulnerabilidade continuam sendo empurradas de um canto ao outro, sem acesso à moradia, saúde ou dignidade. Não se fala em acolhimento real. Fala-se em “requalificação”. O que se vende como ordem é apenas ausência de política pública, de cuidado, de compromisso com vidas que não geram lucro.

A sociedade não se assusta com o que vê. Se assusta com o que é obrigada a ver. A presença dos usuários no centro incomoda não pela violência que sofrem, mas pela lembrança de que falhamos com eles. Quando estão juntos, se tornam “fluxo”. Quando estão espalhados, viram estatística. Invisibilizados, voltam ao lugar que lhes foi designado: o da culpa, da desumanização, da exclusão.

Mas nenhum deslocamento resolve o que é estrutural. Sem moradia, sem emprego, sem tratamento contínuo, sem uma rede real de assistência, a cidade continuará produzindo novas Cracolândias. Hoje na Marechal. Amanhã em Guarulhos. Depois, quem sabe, na sua rua.

A pergunta que fica não é onde estão os usuários. A pergunta é: onde estamos nós?

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.

CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.

Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo