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Xadrez político

Disputas no México, Venezuela, Uruguai e outros países podem redefinir o quadro de poder na América Latina

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Pesquisas. Sheinbaum, a candidata de Obrador, e a senadora Gálvez, apoiada pela direita, lideram no México. Bukele tem folgada dianteira em El Salvador – Imagem: Fernando Ortega, Shealah Craighead/Casa Branca Oficial e MRN
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Depois do triunfo de projetos reacionários no Paraguai, Equador e Argentina ao longo do ano passado, 2024 projeta maior equilíbrio das forças políticas na América Latina pós-disputas presidenciais. México, Uruguai e Venezuela, além de El Salvador, Panamá e República Dominicana, estarão envolvidos em campanhas que devem mobilizar 140 milhões de eleitores. “Os novos líderes influem na composição dos órgãos multilaterais e, portanto, na definição de rumos. A distribuição de riqueza e a soberania comunicacional são centrais para que despontem processos políticos virtuo­sos por setores populares”, observa Yair Cybel, integrante do Centro Estratégico Latino-Americano de Geopolítica (Celag).

A rodada eleitoral começa, em fevereiro, em El Salvador, onde o presidente Nayib Bukele desponta como favorito, ainda que a recondução seja vetada pela Constituição. Sob um infindável estado de exceção, a perda de renda e o desemprego são ofuscados pelo combate às gangues. Apesar de a pequena nação ter a maior taxa de encarceramento do mundo, a repressão e as detenções em massa têm grande apelo popular, a ponto de colocarem ­Bukele como o mandatário mais bem avaliado das Américas, embora as pesquisas no ­país não inspirem tanta confiança. “Não se pode falar em democracia, e sim em poder absoluto do presidente. O povo está submetido e, embora haja descontentamento crescente, o medo é maior”, observa o engenheiro Samuel Ramírez Tenho, um ex-combatente da guerra civil salvadorenha (1980-1992). “Tenho esperança de que o voto silencioso possa ao menos romper o controle na Assembleia Legislativa.”

Ainda na América Central, os eleitores devem comparecer às urnas, em maio, no Panamá e na República Dominicana, onde a construção de um muro na fronteira com o Haiti, rechaçado por organismos de direitos humanos, pode ser o grande trunfo para a reeleição de Luis Abinader, favorito nas pesquisas e com folgada vantagem sobre o ex-presidente Leonel Fernández. “A maioria da população não quer a presença de haitianos nas escolas, nas faculdades, nos postos de trabalho”, comenta o dentista Eduardo Guerrero. “Há restrição a direitos básicos, mas tais informações não são veiculadas pela mídia por sermos um país turístico, há um esforço para parecer que tudo está bem. O trabalho é muito precarizado. Se você passar longa estadia em um hotel, perceberá que a mesma pessoa vai te atender todos os dias da semana.”

Os panamenhos, que recentemente realizaram os maiores protestos das últimas décadas para impedir a continuidade de um empreendimento mineiro, cujo risco para a biodiversidade e as comunidades indígenas era iminente, estão limitados à “velha guarda”, sintetiza o funcionário público Samuel ­Samuels. A vantagem está com o ex-presidente Ricardo Martinelli, que governou o país de 2009 a 2014, destacando-se pelas grandes obras de infraestrutura.

Já a disputa no México, prevista para junho, aponta para a renovação antes mesmo do resultado do pleito, devido ao protagonismo feminino com as candidaturas da ex-chefe de governo da Cidade do México, Claudia Sheinbaum, do partido do presidente López Obrador, em disputa contra a senadora Xóchitl Gálvez, apoiada pela direita. Pela primeira vez na história, indicam as pesquisas, a segunda nação mais populosa da América Latina terá uma mulher na Presidência a partir de outubro.

“O que está em jogo é a manutenção das políticas sociais de Obrador e dos recursos estratégicos nas mãos do Estado. A alternativa é neoliberal. A segurança é outro ponto sensível: como combater os cartéis sem incendiar o país?”, indaga o sociólogo Aldo Munõz. Os progressistas enaltecem ainda investimentos em infraestrutura e as políticas de transferência de renda para estudantes, mães solteiras, idosos e ­pessoas com deficiência. Já os opositores criticam a falta de soluções para a questão migratória e o aumento da violência em um país refém do narcotráfico.

“Os discursos e toda a linguagem, inclusive corporal, precisam estabelecer uma identidade que se aproxime do povo”, diz Muñoz. Sheinbaum tem uma postura sóbria e pode ter vantagem nesse sentido, além de ser próxima a Obrador. Apesar do êxito das candidatas, “a questão de gênero precisa avançar”, pondera Marisa Róman, professora brasileira que vive em Toluca.

Pela primeira vez, os mexicanos devem eleger uma mulher presidente

No Uruguai, referência de convivência pacífica entre adversários, a esquerda deve apostar em Carolina Cosse, prefeita de Montevidéu, e Yamandú Orsi, alcaide­ de Canelones, para voltar à Presidência depois da derrota em 2018 por margem estreita, 30 mil votos. Os aliados do presidente direitista Lacalle Pou acreditam, porém, no crescimento econômico e na força do interior para superar os escândalos de corrupção, as trocas constantes de ministros e as reformas impopulares na educação e no sistema de aposentadoria realizadas por sua administração.

“O relacionamento civilizado entre os partidos se mantém, mas o provável candidato do Parido Nacional, Álvaro ­Delgado, começou um discurso agressivo e de mentiras contra a Frente Ampla”, adverte o ex-deputado Saul Aristimuño, ressaltando que a decisão passa por convencer 10% do eleitorado sem vinculação ideológica.

Mais ao norte, na polarizada Venezuela, ainda se aguarda o anúncio das datas do pleito pelo Conselho Nacional Eleitoral. “Apesar das quase mil sanções impostas pelos EUA, Nicolás Maduro ampliou o acesso à saúde e melhorou a segurança. Precisamos, agora, de um salário mínimo digno”, avalia o jornalista Carlos ­Pacheco, apoiador da “Revolução Bolivariana.”

Pela oposição, a ex-deputada Maria ­Corina Machado venceu as prévias, mas não tem sua participação garantida por estar inabilitada para ocupar cargos públicos por 15 anos, controversa decisão de um Judiciário aparelhado por Maduro. A candidata foi condenada por irregularidades em declarações fiscais e recorre da sentença. “Dos quatro irmãos que tenho, três estão fora do país. Há inflação e escassez. ­Corina é o nome mais forte, mas votar é perda de tempo, afora o risco de violência”, opina Abdul Heredia, que estudava Turismo em uma universidade de Bolívar antes de migrar para o Brasil, há cinco meses. •

Publicado na edição n° 1294 de CartaCapital, em 24 de janeiro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Xadrez político’

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