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Virada à esquerda será ‘tarefa imensa em mau momento’, diz sociólogo

Para o argentino Atilio Borón, nova ‘primavera progressista’ pode sustar o ciclo de direita na América Latina. Mas os obstáculos são grandes

O sociólogo argentino Atilio Boron: eventual revival da 'primavera progressista' na América Latina terá que enfrentar condições muito mais desfavoráveis (Foto: Divulgação)
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O sociólogo argentino Atilio Borón é um dos analistas mais afiados da política latinoamericana. Autor de vários livros que pensam os problemas do continente, ele vê chances de que uma nova ‘primavera progressista’ interrompa o ciclo conservador que tomou a porção sul desde a crise de 2008. Mas os desafios, alerta, serão imensos.

No Panamá, um social-democrata derrotou, por margem apertada, o candidato da direita. Na Argentina, a crise derrete as chances de reeleger Mauricio Macri, e as pesquisas eleitorais sinalizam que Cristina Kirchner pode voltar ao poder. Sua candidatura, porém, está ameaçada por um desfecho judicial.

O principal obstáculo, diz, será reconstruir países afetados pelo desemprego, pobreza, inflação e violência, mas sem um cenário econômico mundial muito diferente do que Lula, Cristina Kirchner e outros progressistas encontraram na primeira década dos anos 2000.

“Veja a herança do México, um país devastado, carcomido pela corrupção e pelas milícias. É uma tarefa imensa em um mau momento”, diz, pegando como exemplo os primeiros meses de Manuel López Obrador no comando do país. Em matéria de política externa, avalia, o mexicano tem tomado o papel de mediador que costumava caber ao Brasil antes da eleição de Jair Bolsonaro.

Doutor em Ciências Políticas pela Universidade de Harvard, Borón esteve no Brasil para a mesa de abertura do III Simpósio Internacional Pensar e Repensar a América Latina, na USP. E recebeu CartaCapital para uma entrevista exclusiva.

Confira a seguir.

CartaCapital: Ainda é cedo para falar em um retorno da primavera esquerdista?

Atilio Borón: Há os primeiros indícios de uma tendência. A direta radical foi derrotada no Panamá, as chances de derrotar [o argentino] Macri crescem dia a dia. Começa a se apresentar um caminho diferente a esse que Macri e Bolsonaro representam. Mas não é mais aquele longo ciclo progressista que começou com Chávez em 99.

CC: O presidente Bolsonaro está preocupado com as eleições argentinas. Falou até no risco de o continente ter uma ‘segunda Venezuela’.

AB: Acho que é a primeira e única vez que eu concordo com o Bolsonaro. Ele tem razão de estar preocupado, a Argentina está no meio de uma debacle econômica extraordinária. Fruto das políticas neoliberais que aumentaram a pobreza, violência, desemprego e combinadas a um endividamento externo tremendo, e uma inflação incontrolável. Nesse cenário, há chances enormes de Macri saia derrotado. Em boa hora.

CC: Há chances de acontecer com Cristina Kirchner o mesmo que ocorreu com Lula?

AB: Acho que não. Querem, mas não podem [prendê-la], porque têm muito medo de uma reação popular, como não houve no Brasil. Mas haveria na Argentina. Seria muito difícil, sobretudo sem provas. Me doeu muito quando houve o grande ato em apoio a Lula antes de ser preso. A manifestação no Rio foi muito pequena, haviam vinte mil pessoas na rua, quando deveriam haver 500 mil.

CC: Caso essa tendência se confirme, que desafios em comum esses governos enfrentarão?

AB: Recompor os países que estão sendo destruídos pela direita. E em condições econômicas muito mais difíceis do que as que tiveram Lula, Kircher, Chávez. Estamos vendo um desastre no Brasil, na Argentina, na Colômbia… A Colômbia foi uma catástrofe, hoje há mais de sete milhões de refugiados, fruto da instabilidade, do paramilitarismo. No Chile, mais de metade da população não vai votar porque acham que a democracia é uma piada, que não serve para nada. A previdência é privatizada, a água é privatizada desde a origem. Veja a herança do México, um país devastado, carcomido pela corrupção e pelas milícias. É uma tarefa imensa em um mau momento.

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CC: Quando López Obrador venceu no México, o campo progressista já comemorava uma iminente virada à esquerda no continente. Como ele têm se saído?

AB: O México é o pais mais importante para os Estados Unidos, porque a fronteira americana é basicamente o México. Isto posto, o país fica muito restrito nas chances de fazer uma mudança. Mas as poucas mudanças já tiveram um efeito positivo.

Um exemplo é o enfraquecimento do Grupo de Lima, que pela primeira vez se declarou contra uma intervenção militar na Venezuela. E concordou em incluir Cuba nos debates. São avanços muito importantes que devemos a López Obrador, que está liderando uma política externa contrária à linha subordinada e dependente [dos Estados Unidos] que havia no passado. Ele está tomando o papel que era do Brasil tinha nos anos Lula.

CC: Sobre a crise na Venezuela, qual a saída mais adequada? 

AB: A única saída é o diálogo. Sentar o povo na mesa de negociação. Pode-se dizer que o governo de Maduro é bom ou mau, mas nenhum governo pode governar bem nas condições externas de asfixia financeira, diplomática, e midiática que enfrenta a Venezuela. Se fizessem o mesmo à Argentina e ao Brasil, esses países se desintegrariam. Mas a Venezuela tem resistido.

CC: Mas como, exatamente? 

AB: É preciso reconhecer que Maduro ganhou legitimamente as eleições. Veja, houve três principais candidatos, ganhou Maduro com 6 milhões de votos, o segundo com quase dois milhões. Também temos que deixar de dizer que o governo de Maduro é uma ditadura. [Saca uma foto de um prefeito venezuelano que veste uma camiseta com os dizeres ‘Maduro filho da puta’]. Como isso é ditadura? Se houvesse eleições, os chavistas voltariam a ganhar, apesar da crise econômica.

CC: Não ficou inviável manter Maduro no poder? Até mesmo para os chavistas?

AB: Por que tirar Maduro? Por que Trump quer? Discutiram isso há mais de um ano sob a direção do Rodríguez Zapatero [ex-premiê espanhol]. Haviam chegado a um acordo que propunha, em um prazo dois anos, a reconstitucionalização do país, começando pela Assembleia Nacional Constituinte. Mas foram os EUA que não quiseram. Cinco minutos antes de firmá-lo, chegou uma ordem dos negociadores americanos e os venezuelanos deixaram a mesa.

Entenda, já disseram Trump, Bolton, Pompeo, Rubio: querem que Maduro caia. Então Maduro e os chavistas, com toda a razão, não vão trocar o presidente. Os EUA têm criado um problema enorme. Se não te deixam importar, não deixam exportar, lhe tomam os bens que têm no exterior, não deixam que lhe cheguem os remédios. O que querem? Querem que se convertam gratuitamente no estado 51 da União americana? Com toda razão os chavistas não querem isso.

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