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Da Argentina ao Equador, o subcontinente exibe as fraturas da precarização do trabalho e do bem-estar

Mão pesada. Noboa colhe a tempestade no Equador de ter optado pelo velho modelo de “guerra às drogas” – Imagem: Forças Armadas do Ecuador e Presidência do Ecuador
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É possível encontrar alguma lógica entre a eleição de um bufão na Argentina, o aumento desmesurado da violência no Equador, a rejeição popular de dois projetos opostos de Constituição no Chile e uma tentativa de golpe no dia da posse do novo presidente da Guatemala? Ou numa frase: há pontos comuns na ofensiva da extrema-direita em vários países da região? Talvez. Em graus diferenciados e com características particulares, todos esses países aplicam intermináveis políticas de ajuste fiscal, que tendem a retrair o crescimento econômico, tirar de cena projetos de desenvolvimento e ampliar a precarização dos mercados de trabalho, aumentando tensões sociais. Na Argentina e no Brasil, países que lograram notáveis níveis de industrialização na segunda metade do século passado, o fantasma da regressão produtiva tornou-se palpável.

As consequências de decisões que afetam profundamente a qualidade de vida das populações são quase imediatas na esfera institucional e não raro provocam reviravoltas políticas bruscas. Não à toa, candidatos que jamais seriam levados a sério em outros tempos, com defesa aberta da repressão e de comportamentos ditatoriais, colhem sucesso nas urnas. O caso mais reluzente é o da Argentina. Ali surgiu outra figura que se apresenta como outsider, apesar de ser deputado nacional, a exemplo de Jair Bolsonaro, no Brasil, cujo programa máximo implica demolir, serrar, vender ou jogar fora pedaços do Estado. Javier ­Milei tornou-se a válvula de escape para uma população exaurida por anos de sobressaltos econômicos sem fim. Sua eleição representa uma derrota histórica para a democracia do país, exatos 40 anos após o fim da ditadura militar. Para as camadas populares, é a combinação de ilusão e tragédia transformadas em poderosa força política. O duce da motosserra é apelidado de “libertário” por uma mídia complacente, numa vaga alusão aos rebeldes franceses de 1968, merecedores à época do mesmo qualificativo. A coreografia catártica da nova extrema-direita é a da rebelião contra “as castas”, “a mentira” e “os políticos”, a terra arrasada como solução de todas as crises e passaporte para a prosperidade.

A disputa política se dá entre uma extrema-direita cada vez mais organizada e um amálgama progressista genérico

O pacotaço de 664 artigos, apresentado publicamente 12 dias após a posse e denominado Lei Ônibus, dá ao eleito poderes que se aproximam aos de uma Constituinte. As intervenções por decreto incidem nas áreas política, econômica, financeira e social e mudam diretrizes estatais de segurança, defesa, energia, tarifas, direitos trabalhistas, saúde e inúmeras outras, implicando privatizações a granel e demissões em massa de funcionários públicos. A dolarização da economia, a extinção da maioria dos ministérios e a perspectiva de extinção do Banco Central acarretam mudanças estruturais no funcionamento da máquina pública.

Evidentemente, o cartapácio não foi elaborado nos 12 dias que separam a posse do novo presidente e sua apresentação ao grande público, em rede nacional. O favorecimento explícito a grandes corporações – com destaque nominal para a Star Link, de Elon Musk – aponta a probabilidade maior de o programa ter sido produzido por think tanks poderosos, com ramificações transnacionais, ao longo de vários meses. A agressividade do candidato durante a campanha e a apresentação em bloco das medidas, de maneira a impactar a opinião pública e colocar opositores na defensiva, são típicas do que a jornalista canadense Naomi Klein definiu há duas décadas como “doutrina do choque”.

Milei terá êxito em suas investidas? Difícil dizer, num país castigado pela decadência econômica quase inexorável há ao menos meio século e marcado por maciços protestos populares. Cerca de 40% da população vive abaixo da linha da pobreza e enfrenta alta precarização laboral e perda de direitos sociais. A falta de perspectivas espalha-se entre a juventude. Em outubro de 2021, uma pesquisa realizada pela Universidade Argentina da Empresa constatou: 75% dos jovens entre 16 e 24 anos desejavam sair do país.

Doutrina do choque. Na Argentina, a oposição mal teve tempo de respirar diante da avalanche de medidas de Milei – Imagem: Luis Robayo/AFP

Mais ao norte, no Equador, a chegada­ da extrema-direita ao poder nas eleições foi impulsionada fundamentalmente pela escalada da violência. O assassinato à luz do dia do candidato à Presidência Fernando Villavicencio em 9 de agosto, 11 dias antes do primeiro turno das eleições do ano passado, foi a epítome de uma campanha marcada pela escalada da criminalidade. Em 2017, último ano do governo Rafael Correa, o número de homicídios era de 5,8 por 100 mil habitantes. Em 2022, a taxa quase quintuplicara (25,9), segundo dados compilados pela fundação estadunidense InSight Crime.

A escalada é motivada por uma multiplicidade de fatores, entre eles a inclusão do país na rota internacional dos grandes cartéis colombianos, peruanos e mexicanos do narcotráfico. De acordo com o Relatório Mundial de Drogas de 2022, divulgado pela ONU, o Equador foi o terceiro país do mundo com mais apreensões de substâncias ilícitas e tornou-se polo articulador do tráfico para os Estados Unidos e a Europa. A tais fatores, somem-se o desmonte de vários mecanismos de controle em favor de empresas de segurança privada, a infiltração do crime nas estruturas estatais e o aumento da pobreza e da exclusão social, impulsionados pela queda dos preços internacionais do petróleo, um dos principais itens da pauta de exportação, entre 2014 e 2016. Além disso, o PIB contraiu-se quase 7% durante a pandemia. A economia dolarizada desde 2000 também entra nessa equação, ao facilitar a lavagem de dinheiro de atividades ilegais. Também neste caso, o desespero social tornou-se um combustível político eficiente.

A campanha para o segundo turno das eleições presidenciais foi caracterizada pelas promessas brutais do vitorioso ­Daniel Noboa, 36 anos, nascido em Miami e integrante da família mais rica do país. A fórmula é conhecida: declarar guerra à criminalidade, com uso do Exército, mudanças legais e políticas de encarceramento em massa. Seu modelo imita o de outro jovem mandatário, Nayib Bukele, presidente de El Salvador desde 2019. Rico, informal e com 5 milhões de seguidores no TikTok, num país de 6,3 milhões de habitantes, Bukele apresenta-se como “o ditador mais cool do mundo”. O qualificativo tem sua razão de ser. Diante do domínio de gangues e descontrole na área de segurança, o presidente governa em estado de exceção e dá carta branca às forças de segurança em suas ações pelo país. Sua obra mais vistosa é uma megapenitenciária com capacidade para 40 mil detentos, localizada a 74 quilômetros da capital. No edifício não existem pátios, áreas externas para recreação ou banho de sol, nem espaços conjugais ou familiares, situação que transgride as Regras Mínimas para o Tratamento de Detentos, definidas pela ONU em 2005.

Antonio Gramsci chamava de “empate catastrófico” a dualidade de poder, quando nenhum lado consegue se impor politicamente

Enquanto isso, as perspectivas continentais, segundo o balanço preliminar das economias da América Latina e do Caribe, lançado pela Cepal em 14 de ­dezembro, são preocupantes. “A atividade econômica (na região) continua exibindo uma trajetória de baixo crescimento. (…) Para 2024 se espera uma taxa inferior à de 2023, o que acentuará a dinâmica de desaceleração (…) e da criação de emprego”, descreve o documento. Para a Cepal, “a produtividade laboral (…) mantém sua dinâmica descendente e se afasta ainda mais dos níveis alcançados em 1980.” Ou seja, a forte desindustrialização na maioria dos países leva a uma regressão produtiva de quatro décadas, o que coincide com a crise das dívidas externas da periferia.

A expressão da decadência econômica não é automática no plano institucional, mas quase sempre se expressa em instabilidades e riscos para a democracia. O esgarçamento de pactos de convivência na base da sociedade e a precarização dos mercados de trabalho, causados pela adoção de políticas neoliberais de austeridade fiscal, deterioração de serviços públicos e queda de qualidade de vida para as maiorias empobrecidas, levam a rápidas oscilações na opinião pública em diversas partes, que devem merecer estudos mais apurados. Somente assim se poderá compreender melhor as bruscas mudanças nos humores da sociedade, como se dá no Chile.

Atraso. Boric administra um Chile que prefere ficar com a Constituição de Pinochet – Imagem: Gabinete da Presidência do Chile

Embora não haja espaço aqui para detalhar a complexa situação recente do país, saído de um governo liberal na economia e repressivo na política para uma gestão que busca, ainda que de forma hesitante, atender às demandas sociais imediatas, vale apontar um brusco ziguezague recente nos humores populares e na disputa política. Parece haver algo de novo nos enfrentamentos entre uma extrema-direita com propósitos cada vez mais nítidos e um amálgama genericamente progressista que tenta aplacar demandas do grande capital, com concessões de vários tipos, e governar com políticas compensatórias para os mais pobres. Temos assim uma disputa entre uma extrema-direita pura e dura, como Bolsonaro, Milei e Bukele, e um neoliberalismo mais humano, como os atuais governos de inclinação à esquerda.

Nesse quadro, ocorreu o caso da votação plebiscitária sobre dois projetos distintos de ordenamento institucional chileno. Em setembro de 2022, após três eleições vencidas pela centro-esquerda, o Chile rejeitou em consulta popular a proposta de nova Carta, articulada por uma maioria progressista, com uma diferença acachapante: 62,55% contra e 37,45% a favor. Vitória indiscutível da extrema-direita, após intensa campanha midiática. Pouco mais de um ano depois, em dezembro último, uma nova proposta, redigida por uma maioria congressual conservadora, também foi rejeitada, por um placar de 55,76% contra e 44,24% a favor. Ou seja, a sociedade repeliu tanto a Constituição mais à esquerda quanto aquela de direita. O motivo desse vaivém ainda não é claro, mas há pistas. O dirigente comunista italiano Antonio Gramsci chamava situações de dualidade de poder, quando nenhum dos lados consegue se impor politicamente, de “empate catastrófico”. Trata-se de um quadro para lá de instável, sem duração ou extensão definidas a priori, nas quais os rumos da sociedade podem ir para qualquer lado, a depender da evolução de acontecimentos por vezes fortuitos. •


*Professor de Relações Internacionais da UFABC. Várias das informações contidas neste texto provêm do livro América Latina em Ebulição, de vários autores, editado pelo Observatório de Política Externa Brasileira (Opeb).

Publicado na edição n° 1294 de CartaCapital, em 24 de janeiro de 2024.

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