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Um EUA mais liberal não surgirá da noite para o dia

A opinião popular se aproxima das políticas mais progressistas, mas os republicanos não perderão sem lutar. Do Observer

Em Denver, no Estado norte-americano do Colorado, Tyler Williams, morador do Estado de Ohio, escolhe tipos de maconha para comprar. O uso recreacional da maconha foi liberado em Denver desde 1º de janeiro
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Por Michael Cohen

Oh, ser um liberal nos Estados Unidos hoje! Na cidade de Nova York, um democrata finalmente foi eleito prefeito depois de uma ausência de 24 anos da prefeitura – e é um liberal empedernido. O casamento gay é permitido em 18 estados, incluindo, bizarramente, Utah, um dos mais conservadores. O salário mínimo está subindo em todo o país e você pode até fumar um baseado no Colorado. O Obamacare, apesar de todos os seus tropeços nas últimas semanas, é a lei da terra; o bloqueio do Senado apenas levou um grande golpe (e junto com ele o obstrucionismo republicano); um acordo nuclear com o Irã está em discussão e até Obama fala sobre o flagelo da desigualdade de renda.

Tudo está ficando cor de rosa, ao que parece. Mas, antes que os progressistas comecem a usar suas camisetas de Che Guevara e a estourar suas rolhas de champanhe artesanal, o momento liberal está enfrentando uma difícil realidade: os conservadores não vão perder sem lutar.

Na verdade, pouco mais de um ano depois que o presidente foi reeleito e o país parecia caminhar em uma direção mais progressista, os republicanos boicotaram grande parte de sua agenda, e 2014 (assim como 2015 e 2016) promete mais do mesmo.

A reforma da imigração, que esteve em primeiro plano na campanha para a reeleição de Obama, está entubada; o controle de armas foi bloqueado no Senado (e jamais teria passado pela Câmara de qualquer modo). Os duros cortes de orçamento continuam amplamente intactos, enquanto o gasto do governo cresce em índices anêmicos.

Nos estados, a história não é muito melhor. Vinte e três dos estados republicanos rejeitaram a expansão do Medicaid, o que está deixando mais de 5 milhões de americanos do lado de fora, olhando para o Obamacare. Reforçados pela decisão da Suprema Corte de derrubar um dispositivo chave da Lei de Direitos Eleitorais, estados de todo o país estão aprovando novas e onerosas restrições ao voto; talvez o pior de tudo seja que 2013 foi o cume de um período de três anos em que se aprovaram mais restrições estaduais ao aborto do que em toda a década anterior.

Muito simplesmente, enquanto o país deu um passo gigante à frente em diversos objetivos progressistas, também deu um grande passo atrás. De fato, em aspectos chaves, enquanto o Obamacare representa uma enorme vitória dos progressistas americanos e talvez seja a mais importante peça de política social em mais de quatro décadas, muitas prioridades liberais continuam incumpridas. E em nenhum lugar isso é mais verdadeiro que na política fiscal. Enquanto os democratas finalmente conseguiram espremer aumentos de impostos do Partido Republicano, eles não conseguiram fazer os conservadores concordarem com o tipo de gastos do governo que são chaves não apenas para a recuperação econômica do país, mas para a criação de novos empregos e a redução da desigualdade de renda.

Enquanto o novo prefeito da cidade de Nova York, Bill de Blasio, disputou com uma plataforma de escola maternal para todos, o plano do presidente nesse sentido morreu ao chegar ao Congresso. O mesmo vale provavelmente para sua proposta de 50 bilhões de dólares em gastos de infraestrutura. No final de dezembro, expirou o seguro-desemprego de mais de 1 milhão de americanos, e parece haver pouco ímpeto no Congresso para restaurar as verbas. Isto ocorre poucos meses depois de os republicanos cortarem impiedosamente os benefícios de cupons de alimentação para os americanos pobres.

O motivo disso não é surpreendente, nem novo. Desde que Obama assumiu o cargo, em 2009, os republicanos adotaram como meta número 1 obstruir praticamente qualquer legislação que o presidente e os apoiadores de seu partido defendem. Com os republicanos no controle da Câmara dos Deputados este ano – e em um futuro previsível –, é improvável que isso mude tão cedo.

Isto fala sobre um desafio maior da democracia americana: ela foi construída para ser um baluarte contra o progresso. Sejam os três poderes do governo americano, os órgãos legislativos separados, os 50 governos estaduais ou um sistema de tribunais com poder para derrubar leis, o número de obstáculos no sistema político americano é muito maior que o número de pontos de planagem. Isto sempre deu aos conservadores uma vantagem política – é muito mais fácil deter uma reforma (ou diluí-la) do que aprovar novas leis. De qualquer modo, o momento liberal pode encontrar suas maiores oportunidades nos mesmos lugares em que o fez durante a era dos direitos civis – no sistema de tribunais (como foi o caso na questão do casamento gay). Mas mesmo aqui talvez seja necessário esperar que o presidente Obama faça o Senado aprovar suas escolhas de juízes antes que um progresso significativo possa ocorrer.

Por sua vez, os liberais não devem perder toda a esperança. Em diversos temas, os objetivos progressistas nunca foram tão aprovados pela população americana. Desde o casamento gay à legalização da maconha, ao aumento do salário mínimo, a reforma da imigração, a verificação de antecedentes para compradores de armas e até as especificidades dos gastos do governo, a opinião pública está fortemente a favor deles. Os americanos apoiam mais o governo ativista, a política populista e as políticas socialmente liberais do que em qualquer momento na memória recente. Além disso, os milenares (pessoas na faixa dos 20 anos e início dos 30) são decididamente liberais, chegando a preferir o socialismo ao capitalismo em uma pesquisa recente.

O fracasso do liberalismo em aprovar o tipo de reformas que são essenciais para sua visão dos Estados Unidos não vem de uma incapacidade de movimentar a opinião pública a seu favor – vem de seu fracasso em encontrar uma maneira de contornar o rejeicionismo conservador. Mas enquanto os republicanos assumiam posições cada vez mais radicais em uma série de temas – do aborto aos impostos e, de modo mais prejudicial, a imigração –, eles se marginalizaram e diminuíram o apelo do conservadorismo, especialmente para jovens americanos, mulheres e hispânicos (o grupo demográfico de crescimento mais rápido no país).

De fato, o sucesso dos republicanos em bloquear a reforma é mais uma ação de retaguarda desesperada para deter o progresso do que um indício de sucesso conservador ou mesmo de ascendência política. Em todo caso, está tornando muito mais provável a percepção do momento liberal ao tornar o conservadorismo igualmente menos popular.

O problema é que isso não é muito bom para a mulher que hoje busca um aborto em um estado republicano, ou a pessoa que procura um emprego e está prestes a perder seus benefícios de desempregado, ou a próxima vítima da violência das armas.

Em curto prazo, a política americana provavelmente parecerá uma versão radical do impasse e da disfunção a que os americanos se habituaram demais. A pergunta, então, não é se os liberais terão seu momento ao sol – é quando. Infelizmente para eles – e os eleitores que os apoiam –, 2014 provavelmente não será o ano em que isso acontecerá.

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