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Sob o tacão de Angela Merkel

A chanceler contribuiu para a bolha bancária que deflagra a crise no paraíso fiscal, mas agora ataca os oligarcas russos

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Na noite de quinta-feira 21, enraivecidos cidadãos cipriotas enfrentavam a polícia diante do Parlamento. À frente de uma crise financeira sem precedentes, desde sábado 16 os bancos estão fechados e só abrirão suas portas na terça-feira 26, ou sabe-se lá quando. A economia está em apuros e, por tabela, o povo da pequena ilha mediterrânea, a integrar desde 2008 a Zona do Euro, está em pânico. Filas se adensam diante de caixas eletrônicos, restaurantes só recebem dinheiro. E cartões de crédito são raramente aceitos.

Os incidentes diante do Parlamento não pareciam graves na quinta 21, mas a situação poderia se agravar caso as autoridades não viabilizassem um plano internacional de resgate financeiro para salvar o país da falência. Em seguida, o plano teria de ser aprovado pelo Parlamento, mas não estava definido o momento da votação.

 

 

Sabia-se que as autoridades, após terem descartado as controversas taxas compulsórias sobre depósitos bancários, rejeitadas de forma contundente na terça-feira 19 em votação parlamentar, tinham optado pela criação de um fundo de investimento de solidariedade. Eram vagos os detalhes de como seriam levantados os 5,8 bilhões de euros, condição para a Troika (Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional) liberar 10 bilhões de euros para salvar os bancos estabelecidos no paraíso fiscal.

Falava-se, por exemplo, na nacionalização de fundos de pensão, uma forma de aportar somas para o fundo de solidariedade. Cogitava-se, ainda, a ajuda da Igreja Ortodoxa do Chipre, cujo patrimônio imobiliário seria colocado a serviço do Estado, como forma de garantia. Outra solução estaria, segundo a agência noticiosa AFP, na emissão de dívida garantida pelos recursos futuros obtidos por meio do gás da ilha. No entanto, o banco russo Gazprombank, detentor de 41% da gigante estatal Gazprom, teria oferecido ajuda financeira em troca de licenças de exploração do gás natural. Se aceita a oferta, a Rússia proporia um plano de resgate financeiro.

Os russos estão jogando duro para obter resultados mais rendosos. O ministro cipriota das Finanças, Michalis Sarris, consta, não conseguiu, em sua visita esta semana à Rússia, uma extensão do crédito de 2,5 bilhões de euros concedidos por Moscou a Nicósia em 2011 para 2016. Seu homólogo também não lhe teria concedido um novo empréstimo capaz de livrar o Chipre das injunções da terrível Troika. De todo modo, Sarris não esteve com o enigmático Vladimir Putin.

Além de ver oportunidades geopolíticas na crise cipriota, Putin se inquieta com os 30 bilhões de euros investidos por empresas russas em Chipre. Antes da rejeição do pacote da Troika, um comuni-cado do Kremlin declarou: “Esse resgate é injusto, não é profissional e é perigoso”. Putin desconsidera o fato de que os oligarcas russos estão lavando dinheiro sujo na ilha de Afrodite. Mas, como sempre, no mundo do Realpolitik a moeda corrente é o pragmatismo. O lider russo telefonou para o presidente Nicos Anastasiades e disse-lhe para continuar a negociar com a UE. Em seguida, recebeu, na quinta 21, o presidente da Comissão Europeia, José Manuel Durão Barroso.

Oficialmente, o Chipre continua a lidar com a Troika. Além dos 5,8 bilhões de euros, mais 1,2 bilhão que seriam arrecadados pelo governo cipriota por meio de mais medidas de austeridade – a ilha precisaria de 17 bilhões de euros, segundo a Troika – financiariam o Estado. A crise bancária, consequência em grande parte da reestruturação da dívida grega, é também política e seu desfecho determinará o futuro do presidente, o conservador Anastasiades, eleito em fevereiro. Até agora, pelo menos quando abre a boca, ele não tem merecido credibilidade. Uma vez assinado o plano de resgate financeiro com a Troika, no sábado 16, o presidente ponderou: “Foi a menos ruim das soluções, mesmo se ela foi muito dolorosa”. Rejeitado o plano, o presidente deduziu: “Eles (os cipriotas) pensam que (o plano) é injusto contra os interesses do Chipre”.

Mais importante que o futuro de Anastasiades é o fato de a crise ter profundas repercussões europeias. Caso até segunda 25 as autoridades cipriotas não apresentem um plano de resgate financeiro satisfatório para angariar os 7 bilhões de euros exigidos pela Troika, o BCE não manterá a provisão de liquidez de emergência (plano de Assistência de Liquidez de Emergência, ou ELA em inglês) aos bancos cipriotas. O ELA só pode oferecer liquidez para bancos da Zona do Euro se entender que permanecerão solventes. Mas os dois maiores bancos da ilha, o Bank of Cyprus e o Laiki, estariam à beira da falência. E, quando reabrirem as portas, haverá uma fuga de capitais. O ECB perderia não somente credibilidade, mas se tornaria insolvente. Nesse contexto, o ELA só poderá continuar a ajudar os bancos cipriotas caso a Troika lhes ofereça um programa de solvência. Se isso não acontecer, Chipre diria adeus à Zona do Euro.

De qualquer forma, o pacote de resgate financeiro da Troika rompeu um tabu: impôs uma “taxa de estabilidade”. Aqueles com depósitos de até 100 mil euros pagariam taxas de 6,75%, e o porcentual seria de 9,9% para correntistas com somas superiores, vários deles oligarcas russos. Embora a Troika garanta ter sido uma exceção esse caso de adoção da “taxa de estabilidade”, o precedente foi criado. Portugueses, espanhóis e italianos poderão ter o mesmo impulso dos cipriotas e correr aos bancos para sacar dinheiro e colocá-lo debaixo do colchão.

Da Troika, diga-se, não surpreende a concepção de um pacote antidemocrático, pelo menos para os menos endinheirados. Antes da votação parlamentar de terça-feira 19, é verdade, apenas os correntistas com mais de 20 mil euros no banco pagariam a taxa compulsória de 6,75%, e a de 9,9% continuaria em vigor para aqueles com somas superiores a 100 mil euros. Mesmo assim, o povo correu para sacar dinheiro dos caixas automáticos. Em vão: o valor do imposto já havia sido congelado. Por que o Chipre recebeu um “tratamento especial”, a chamada “taxa de estabilidade”?

A ilha é um paraíso fiscal. A chanceler alemã, Angela Merkel, disse alto e claro: “Os contribuintes alemães não vão ajudar os oligarcas russos”. Por essas e outras, Merkel apoia o radicalismo do FMI contra as reticências das autoridades europeias sobre o plano felizmente rejeitado. A chanceler tem suas razões para negar-se a ajudar os oligarcas russos. No entanto, por que somente agora os alemães querem punir o paraíso fiscal, que existe faz duas décadas? A chanceler parece esquecer-se de que os bancos alemães emprestaram cerca de 6 bilhões de euros a bancos em crise desde 2008. Em miúdos, a Alemanha também contribuiu para criar uma bolha bancária na ilha ensolarada. Às vésperas de eleições, Berlim dá as cartas em Chipre.

       

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