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Relatos da casa dos mortos

Jornalistas independentes descrevem a destruição na Líbia

Inundação. O número de mortos nas enchentes passa de 10 mil. E há a mesma quantidade de desaparecidos – Imagem: AFP
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No início da segunda semana de setembro, Mohamed Eljabo, jornalista independente de Trípoli, na Líbia, viajou para as províncias orientais do país. Passou por Derna, Al Bayda e Sousa, e descreveu o que viu como um choque além da compreensão. “Já visitei essas cidades e as conheço bem”, diz. “Esperava encontrar esses locais quando fiz a viagem de Trípoli. Esperava ver os bairros e as cidades. Mas eles desapareceram. Foram apagados. É horrível.”

Eljabo é um dos muitos repórteres locais que testemunharam cenas que agora acham difícil descrever e que tentam processar mentalmente. The ­Observer conversou com seis jornalistas que escaparam por pouco da morte, vivenciaram a perda de amigos e entes queridos e escreveram reportagens de lugares agora quase apagados do mapa. “A parte mais assustadora de toda a experiência foi a cicatriz que a tempestade deixou nos vivos”, descreve Eljabo. “Quando comecei a trabalhar numa reportagem e a interagir com os sobreviventes, seus rostos gritavam de medo. O horror era tangível em seus olhos, em suas feições. Havia crianças chorando sobre os túmulos de suas famílias e tentando entrar nos túmulos. Nunca experimentei algo tão angustiante.”

Noura Mahmoud al-Haddad, jornalista independente da cidade de Al-Shahat, a 100 quilômetros de Derna, viu de suas janelas a chuva cair durante quase 24 horas, fazendo com que a energia acabasse e a água enchesse as ruas à altura do segundo andar dos edifícios. “Foi uma noite catastrófica. Quase morremos afogados. Até postei na minha página do Facebook o meu fim e me despedi da minha família antes de ir para a cama. Esperava morrer com meus três filhos, que coloquei ao meu lado na cama”, diz Al-Haddad.

As enchentes causaram o caos em ­Derna e seus arredores, deixando para trás corpos nas praias, nas ruas e embaixo de escombros. De acordo com a ONU, as autoridades locais, preocupadas com a propagação de doenças, enterraram às pressas mil vítimas em valas comuns. A Organização Mundial da Saúde e outros tiveram de alertar contra essa pressa, dizendo que não havia ameaça adicional de doenças, mas que a água potável era uma prioridade porque o manancial ficaria contaminado.

Há preocupação com a movimentação de explosivos não detonados que são deslocados pelas águas das cheias, tendo já matado 3.457 civis na Líbia desde a guerra civil, de acordo com o Monitor de Minas Terrestres e Munições.

O Crescente Vermelho Líbio disse que 11 mil morreram em Derna e mais de 10 mil estão desaparecidos. As equipes de resgate são obrigadas a cavar na lama para procurar mais corpos, enquanto a evacuação dos residentes que restam ocorre em ritmo lento. Embora o oeste da Líbia seja controlado por um governo apoiado pela ONU, as áreas afetadas no leste foram governadas durante grande parte da última década pelo líder guerreiro general Khalifa Haftar.

Para os jornalistas que viveram e relataram as enchentes, a sangrenta disputa política contribuiu para a degradação dos serviços do país, incluindo a falta de manutenção das barragens de Derna, da década de 1970, que ruíram. Eles, assim como outros na zona do desastre, estão revoltados com a forma como uma catástrofe desta escala foi permitida. “Enquanto cobria os acontecimentos para a mídia local e internacional, tentei permanecer neutro e descrever a situação com precisão. Mas não tenho certeza se consegui”, confessa Hendia Hamdy ­Alashepy, jornalista independente de Benghazi, maior cidade do leste da Líbia.

Zainab Jibril, repórter: “Meus amigos sobreviveram, mas voltaram diferentes”

A responsabilidade de tentar esclarecer parte da confusão acabou por recair sobre Mohamed Gurj, correspondente do canal de tevê Lybia Al-Ahrar, que criou um grupo de WhatsApp para conectar jornalistas entre si e também com funcionários do governo. Repórter experiente que pensava ter visto de tudo desde o início da guerra civil em 2011, e até foi sequestrado naquele ano por um grupo armado, Gurj ficou chocado com as inundações e decidiu agir. Mas considerou a gestão do grupo e as tensões entre civis e autoridades esmagadoras. “Achei-me responsável, de uma forma ou de outra, pela gestão da crise que ocorreu, pela articulação das relações entre todas as partes e pela gestão do desastre e de todas as equipes. Depois de um dia e meio dessa pressão, cheguei em casa e desmaiei. Não comia nada nem dormia desde o início da crise.”

Sua mulher, Zainab Jibril, também jornalista, passou o tempo todo tentando entrar em contato com amigos desaparecidos. “Finalmente, chegou a notícia de que a maioria dos meus amigos estava bem. Eles conseguiram sobreviver, mas perderam suas famílias. Meus amigos sobreviveram, mas voltaram como indivíduos diferentes. Diferentes pela magnitude do choque”, diz Jibril. Apesar da tragédia que testemunhou, Gurj se diz orgulhoso porque o trabalho via grupo de WhatsApp ajudou a salvar vidas e a comunicar do que a Líbia precisa.

A forma de ajuda que agora chega ao ­país está na mente desses jornalistas líbios, que cobriam os problemas do país em tempos de guerra e de governos rivais, mesmo antes das inundações. Eles estão menos preocupados com a necessidade de alimentos e ajuda em curto prazo, mas dizem que a Líbia precisa de apoio para a reconstrução. Segundo Haddad, a população de Derna não quer deixar a cidade para trás, e sua prioridade é reconstruir as barragens destruídas, enquanto Eljabo diz que há necessidade de expertise. “Os líbios hoje não precisam de recursos. Nós temos bastante. O que precisamos é de conhecimento especializado, experiência técnica e socorristas treinados. Precisamos que o mundo envie seus socorristas experientes e especialistas qualificados. Precisamos que o mundo nos dê uma mão.”

A recuperação será relatada pelos mesmos jornalistas líbios que tiveram de suportar a tempestade, como ­Moataz ­el-Hasi, baseado em Derna, que mal comeu ou falou desde então, com sua mente repetindo as cenas que testemunhou. “Mas é o nosso trabalho e estarei de volta em campo dentro de algumas horas, porque é o mínimo que podemos fazer: mostrar ao mundo pelo que a Líbia está passando, dizer-lhes como podem ajudar”, resumiu. •


*Os depoimentos foram colhidos pela Egab, organização que trabalha com jornalistas locais em todo o Oriente Médio e África.
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1278 de CartaCapital, em 27 de setembro de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Relatos da casa dos mortos’

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