Mundo
Putin, o eterno
Eleito com 87% dos votos para um quinto mandato, o “czar” reafirma o risco de uma Terceira Guerra Mundial


Os russos perdem o pescoço, com mais frequência nos últimos tempos, mas não perdem a piada. E há muitas sobre Vladimir Putin. Eis uma, apropriada para o momento:
Um americanófilo, um comunista e Putin participam de um comício eleitoral.
O americanófilo diz: “Prometo a todos que votarem em mim que eles viverão como nos Estados Unidos”.
O comunista diz: “Prometo a todos que votarem em mim que eles viverão como na União Soviética”.
Putin diz: “Prometo a todos que votarem em mim que eles… viverão”.
De certa maneira, assim o Ocidente encarou a reeleição para um quinto mandato do ex-agente da KGB. No domingo 17, Putin amealhou 87,3% dos votos, o maior porcentual desde a sua chegada ao poder em 1999, como primeiro-ministro, pelas mãos de Boris Yeltsin. Os três adversários autorizados a concorrer, todos defensores da invasão da Ucrânia, oscilaram de 3,2% a 4,3%, segundo a comissão eleitoral. A participação também foi recorde: 77% dos votantes compareceram às urnas. O “czar” ficará no comando do país até 2030, no mínimo, e deverá superar em longevidade o ditador Joseph Stalin, cujo reinado de terror durou 28 anos e 11 meses.
Tanto quanto a presumida vitória de Putin, as reações nos dois lados do globo seguiram o script de sempre. A maioria dos países ocidentais, sob a orientação de Washington, chamou de fraude o processo. “Não foi uma eleição livre e justa”, disparou Josep Borrell, alto representante da União Europeia para as Relações Internacionais. “Isto é o que posso dizer diplomaticamente. Mais que isso, estas eleições foram baseadas na repressão e na intimidação.” Presidente do Conselho Europeu, Charles Michel ironizou uma mensagem de Dmitry Medvedev, vice-presidente do Conselho de Segurança da Rússia. Ainda antes da confirmação oficial dos resultados, Medvedev postou na rede social Telegram: “Parabenizo Vladimir Putin pela sua esplêndida vitória”. Ao que Michel emendou na rede X: “Gostaria de parabenizar Vladimir Putin por sua vitória esmagadora nas eleições que começam hoje. Sem oposição. Sem liberdade. Não há escolha”.
Na outra metade do planeta, sobraram congratulações. Segundo o líder chinês Xi Jinping, a vitória “reflete plenamente” o apoio do povo ao presidente russo. “Esperamos trabalhar juntos para fortalecer ainda mais a comprovada parceira estratégica especial e privilegiada entre a Índia e a Rússia nos próximos anos”, festejou Narendra Modi, primeiro-ministro indiano candidato à reeleição. O presidente turco, Recep Erdogan, expressou “sua convicção de que a evolução positiva das relações (entre as duas nações) continuava e afirmou que a Turquia estava pronta para desempenhar um papel de facilitador para regressar à mesa de negociações com a Ucrânia”.
O novo mandato vai até 2030 e fará o ex-agente da KGB ultrapassar Stalin em longevidade no poder
Fortalecido pela esmagadora margem registrada nas urnas, Putin deu-se ao luxo de se portar de maneira menos inflexível, até com certa simpatia, durante a coletiva de imprensa na segunda-feira 18. Não só aceitou responder a uma pergunta de uma jornalista norte-americana como mencionou pela primeira vez em anos o nome do opositor Alexei Navalny, morto em 16 de fevereiro de forma misteriosa em um presídio na Sibéria. O presidente russo confirmou a existência de negociações para trocar Navalny e dois cidadãos dos Estados Unidos por Vadim Krasikov, condenado em 2019 a prisão perpétua na Alemanha pelo assassinato de Zelimkhan “Tornike” Khangoshvili, georgiano de ascendência chechena. “Acontece. Não há nada que você possa fazer sobre isso. É a vida”, afirmou a respeito da morte do dissidente. Na mesma entrevista, Putin voltou a mencionar o risco de o conflito na Ucrânia ultrapassar as fronteiras dos dois países, caso a Otan, conforme sugerido pelo presidente francês, Emannuel Macron, envie tropas para lutar ao lado de Kiev. “Tudo é possível no mundo de hoje”, respondeu. “Está claro para todos que estamos a um passo de uma Terceira Guerra Mundial em grande escala. Acho que quase ninguém está interessado nisso.”
Dois anos depois do início da invasão da Ucrânia, a batalha arrasta-se sem sinais de vantagem para um dos lados, apesar de que a suspensão do financiamento dos Estados Unidos, imposta pelos parlamentares republicanos, e a demora da União Europeia em enviar munição e recursos ao aliado Volodymyr Zelensky tenham permitido ao exército russo a retomada de algumas iniciativas militares e de alguns quilômetros na região do Donbass. Na entrevista aos jornalistas, Putin disse planejar a criação de uma zona-tampão em território ucraniano para proteger seu país de bombardeios e ataques por terra. Desde o ano passado, mais de 500 mil voluntários foram recrutados para os combates no terreno inimigo – prevê-se uma nova ofensiva russa nos próximos meses.
O esforço de guerra, o aumento da repressão interna e a falta de alternativa real de poder reforçam o controle de Putin sobre o país. Os resultados eleitorais do domingo 17, confiáveis ou não, desfazem a ilusão ocidental de uma revolta popular capaz de apeá-lo do Kremlin. Ao contrário. A “russofobia” crescente e as sanções econômicas impostas pelos Estados Unidos e União Europeia parecem produzir um efeito contrário do desejado, um sentimento nacionalista, de autopreservação, que, no fim das contas, favorece os planos do presidente reeleito. Se os russos, aos olhos do Ocidente, são os “vilões”, nada melhor do que reforçar a caricatura. Putin é o ator perfeito para contracenar com James Bond. •
Publicado na edição n° 1303 de CartaCapital, em 27 de março de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Putin, o eterno’
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