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Progressismo em risco

Do Chile à Colômbia, os governos de esquerda tropeçam

O presidente colombiano, Gustavo Petro. Imagem: Natasha Pisarenko/AFP e Sidney Phoenix/U.S. DHS
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Havia certa semelhança com o cenário utilizado na Argentina por Juan Domingo Perón, nos anos 1940/50. No início da tarde da segunda-feira 1º de maio, o presidente colombiano Gustavo Petro caminhou pelo Salão ­Bolívar do palácio presidencial e dirigiu-se ao púlpito montado no balcão da janela principal, no primeiro andar, em frente à lotada Praça de Armas, no centro de Bogotá. Ao se pronunciar contra “as elites e os escravistas” por mais de uma hora, Petro acusou tais setores de não permitirem avanços sociais, como o fortalecimento da saúde pública, a reforma agrária e alterações na previdência que recuperem direitos trabalhistas perdidos nas últimas décadas. A cada cinco ou dez minutos, o discurso era interrompido por gritos de apoio.

Mais do que aplausos, Petro buscava apoio popular diante do terremoto na institucionalidade na semana anterior. Diante de votos contrários no Legislativo a projetos oficiais por parte de parlamentares de agremiações que integram o governo, o mandatário virou a mesa. Pediu a renúncia de todos os ministros e trocou sete titulares. A lista inclui José Antonio Ocampo, ex-professor na Universidade Colúmbia e espécie de fiador do governo no mercado internacional. Entre as reformas, a mais sensível é aquela do sistema de saúde, projetada para eliminar intermediários privados nas redes públicas de pronto-atendimento. O colombiano coloca seu mandato em risco, numa disputa de poder entre o Estado e grandes interesses privados. Caso saia vitorioso, mostrará interna e externamente que o enfrentamento vale a pena. Sua taxa de aprovação caiu de 40%, em fevereiro, para 35% na metade de abril, segundo o instituto Invanmer. A maioria parlamentar anterior reduziu-se a cerca de 20% nas duas casas legislativas.

Petro literalmente chutou o balde diante de obstáculos semelhantes enfrentados pela nova safra reformista de governantes sul-americanos, eleita a partir de 2019. Os constrangimentos são representados por ameaças da direita e da extrema-direita, por reformas regressivas e privatizantes e pela queda acentuada da qualidade de vida da população, após três anos de pandemia e de efeitos da guerra na Ucrânia.

Com menos de um ano no poder, o colombiano Gustavo Petro encara a primeira crise

Se Petro representa o gesto de ousadia, o jovem chileno Gabriel Boric, com pouco mais de um ano de gestão, coleciona derrotas, recuos em áreas importantes e fissuras públicas na frente política que o elegeu. Apesar de ter obtido, em 11 de março, uma expressiva vitória parlamentar (127 a 14, na Câmara) para o projeto que reduz de 44 para 40 o número de horas trabalhadas, três dias antes viu sua proposta de reforma tributária ser derrotada por 73 votos a 71. Entre as promessas de campanha comprometidas estão a reforma previdenciária e no sistema de saúde e projetos para reduzir o surto de crescente violência no país. Entre 2021 e 2022, houve aumento de 33,4% no número de homicídios, o que mobilizou diversas facções conservadoras a aprovar, no Congresso, leis duras contra a criminalidade. O apoio e a sanção presidencial ao que setores progressistas denominam “lei do gatilho fácil” tensionam a aliança oficial. A deriva conservadora do presidente tem provocado críticas públicas de representantes dos partidos comunista e socialista, abrigados no governo.

Boric perdeu grande parte da iniciativa política em setembro de 2022, com a derrota em plebiscito do projeto de Constituição (62% a 38%) debatido por mais de um ano em convenção eleita no início do ano anterior. A partir daí o chefe do Executivo realizou diversas modificações em seu gabinete, tornando-o mais conservador, num quadro de desaceleração econômica e tendência altista na inflação. Apesar da ligeira elevação dos índices de aprovação (33,8% em fevereiro), o governo continua a enfrentar dificuldades para manter a iniciativa, às vésperas das eleições para um novo processo constituinte, em 7 de maio. A principal diferença em relação à dinâmica anterior será a supervisão de duas comissões, uma de especialistas, que apresentará previamente um texto-base, e outra de magistrados, indicados pela direção do Congresso, de maioria conservadora.

Na Argentina, a cinco meses para as eleições presidenciais, uma crise inflacionária e a carência de dólares na economia levam a um cenário de alta indefinição: nem o governo nem a oposição têm um candidato favorito na disputa. Tanto o atual presidente, Alberto Fernández, quanto o ex, Mauricio Macri, desistiram de se apresentar nas urnas em outubro. No peronismo, há movimentos para Cristina Kirchner postular um terceiro mandato. O mais provável é que a coalizão governista Frente Para Todos seja derrotada pela aliança direitista Juntos por el Cambio, de Macri.

A ausência de um nome que empolgue o eleitorado indica, no entanto, a possibilidade de aventuras antissistema surgirem no horizonte. Nesse ambiente, o deputado de extrema-direita Javier Milei, da coalizão Libertad Avanza, faz barulho com uma proposta explosiva: a dolarização total da economia. Individualmente, Milei aparece na dianteira das pesquisas, com 26,6%, no fim de abril. Apesar disso, a coalizão de Macri apresenta 28,1% das intenções de voto, contra 22,8% da FdT e 16,6% dos libertários. Embora sedutora para uma população cansada de choques recessivos, o programa desses últimos tenderá a agravar os problemas de uma economia com pouco acesso ao crédito internacional e com cerca de 75% de sua dívida nominada em dólar.

Fragilidades estruturais nos países menores e pressões fiscalistas e antidesenvolvimentistas por parte de hipertrofiados sistemas financeiros colocam a nova onda reformista em questão. A emergência do neofascismo na região surge como ameaça à democracia, num período em que uma onda neoliberal muito mais agressiva do que aquela vivida nos anos 1990, afronta não apenas o caráter público do Estado, mas o próprio funcionamento das instituições. Onde estará a saída, na radicalização de Petro ou na negociação de Lula, para ficarmos nas principais lideranças? •

Publicado na edição n° 1258 de CartaCapital, em 10 de maio de 2023.

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