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Paz violenta

A comunidade internacional contenta-se com uma Palestina “calma”, embora miserável e oprimida

Os termos da reação israelense são sempre os mesmos: “castigo exemplar”, “dar uma lição” etc. – Imagem: Yasser Qudih/AFP
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O atual conflito na Faixa de Gaza é praticamente uma reedição de conflitos anteriores, a não ser pela forma como foram realizados os ataques do Hamas. Por meios ­aéreos, marítimos e terrestres articulados com o lançamento de foguetes, os combatentes do Hamas causaram surpresa pela ousadia e intensidade das ações em território ­ocupado por Israel e provocaram centenas de mortes de civis e militares israelenses.

Assim como nos outros episódios de violência na região, o debate pautado ­pela mídia foi em torno do Hamas e com isso a questão da ocupação, opressão e humilhação que o povo palestino, em geral, e os habitantes de Gaza, em particular, vivem há 75 anos sob regime de ­apartheid foi esquecido.

Sob a perspectiva geopolítica, talvez o fato de os militantes do Hamas terem ultrapassado as fronteiras seja o ponto mais perturbador para a doutrina de segurança nacional de Israel. Não por acaso, dois dias depois dos ataques, o Ministério da Defesa repetiu várias vezes que havia “restaurado o controle total” sobre a fronteira de Gaza. É compreensível essa preocupação do governo israelense, pois, como está reconhecido no sistema internacional vigente, fronteiras definidas e seguras são um elemento essencial para o exercício da soberania nacional. Mas quais foram os fundamentos que orientaram a constituição dessas fronteiras?

Em 29 de novembro de 1947, a Assembleia-Geral da ONU, com o apoio decisivo das grandes potências, aprovou a Resolução 181, que resultou no plano de partilha da Palestina. Os colonos judeus, antes proprietários de 6% das terras e 30% da população local (600 mil habitantes), passaram a ter 55% do território. Os palestinos, que representavam 70% da população (1,3 milhão), ficaram com os 45% restantes. Portanto, houve um processo violento de expropriação e expulsão de palestinos, marcando definitivamente a história desses povos.

Durante a guerra da Palestina, entre 1947 e 1949, os palestinos foram expulsos de cerca de 400 cidades e vilarejos onde eram maioria. Várias cidades e comunidades tomadas temporariamente pelo Hamas eram habitadas, em sua maioria, por palestinos que se refugiaram na Faixa de Gaza. Portanto, na perspectiva dos palestinos, essa mobilização iniciada em 7 de outubro era a realização do sonho do retorno.

Houve outros momentos históricos importantes que moldaram o destino de Gaza. Em junho de 1967, como decorrência da vitória de Israel na guerra com os países árabes (Síria, Egito e Jordânia), a ­Cisjordânia e a Faixa de Gaza foram ocupadas militarmente pelas forças israelenses e passaram a ser chamadas de Territórios Palestinos Ocupados (TPO). Em 2005, teve início o chamado plano de desengajamento de Gaza proposto pelo então primeiro-ministro israelense Ariel Sharon. A retirada de todos os seus assentamentos causou boa impressão na comunidade internacional, pois poderia ser o início de um Estado em Gaza, abrindo um caminho para a paz. O porta-voz do Hamas chegou a afirmar que se tratava de uma vitória da resistência armada e que “Israel deixou Gaza porque se tornou um fardo”.

Em 2006, houve eleições na Palestina e o Hamas conseguiu 74 dos 132 assentos parlamentares, contra 45 do Fatah. Isto se devia principalmente à sua histórica atuação como organização de caridade aliada à insatisfação popular em relação ao governo do Fatah, acusado de corrupção e de ser conivente com a ocupação israelense. A vitória do Hamas foi vista com grande apreensão na comunidade internacional e desencadeou verdadeira guerra civil com o Fatah, que resultou na tomada de poder na Faixa de Gaza.

O terrível ciclo de violência não terminará até a constituição de um Estado palestino soberano e autônomo

Em 2007, Israel declarou formalmente que a Faixa de Gaza é uma entidade hostil e instaurou o bloqueio terrestre, marítimo e aéreo da região que perdura até hoje. Para se ter uma dimensão das consequências desse cercamento, a ONU publicou um relatório em 2012 prevendo que em 2020 a região se tornaria um lugar inabitável. Aproximadamente, 97% da água é considerada imprópria para uso, mais da metade da população vive abaixo da linha da pobreza, 80% dependem de ajuda externa e 64% dos jovens estão desempregados. Além das péssimas condições de vida, os habitantes de Gaza sofrem graves crises humanitárias decorrentes de seis guerras assimétricas. Diferentemente de outros conflitos bélicos, não podem escapar de seu território, que conta com uma das maiores densidades populacionais do mundo.

Uma pergunta inevitável refere-se à forma de luta legítima que o povo palestino deve empreender contra um opressor muito superior em termos militares. As ações bélicas do Hamas, além de causarem danos na população civil israelense, só fazem aguçar o ímpeto destrutivo e cruel da retaliação de Tel-Aviv a um ­custo enorme para os palestinos. Desde 2007, o governo israelense diz que o objetivo do uso intensivo e desproporcional da força é acabar com o terrorismo do Hamas e proteger os civis israelenses.

O ministro da Defesa de Israel declarou ter ordenado “um cerco completo” à Faixa de Gaza. “Não haverá eletricidade, nem comida, nem combustível… Estamos lutando contra animais humanos e agiremos em conformidade.” Com isso, pretende culpar a vítima de sua própria tragédia, desde uma suposta superioridade moral. As frases que mais se repetem durante esses anos são: merecem um “castigo exemplar”, “pagarão um preço insuportável”, “lhes daremos uma lição”. Entretanto, a lógica da resistência é que, quanto mais punições coletivas se infligem a uma população, há mais determinação.

Entre 2018 e 2019, uma ampla mobilização pacífica envolveu dezenas de milhares de palestinos que se dirigiram à fronteira reivindicando a suspensão do cerco. O movimento foi realizado à revelia do Hamas, que não teve nenhuma participação nos eventos. Mesmo assim, as forças de Israel mataram 170 manifestantes e deixaram centenas de feridos, com graves consequências físicas. Foi um recado muito claro do governo israelense de que estava pouco se importando com os métodos empregados.

Em curto prazo, o mais importante agora é cessar as hostilidades, a fim de preservar a vida dos civis. A população de Gaza voltará a uma situação que a comunidade internacional chama de “calma”. Na verdade, trata-se de uma paz violenta, uma espécie de calmaria de miséria e opressão que antecede as tempestades e, quando isso voltar a acontecer, vamos falar das mesmas coisas que estamos a debater agora.  Triste constatar que este terrível ciclo de violência não terminará até que seja constituído um Estado palestino soberano e autônomo. Para isso, é necessário que voltemos ao início de todo esse processo, isto é, quando as grandes potências na ONU criaram o Estado de Israel. Agora seria o momento de quitar essa dívida moral, maior causa das tragédias na Palestina. •


*Professor de Relações Internacionais da PUC-SP.

Publicado na edição n° 1281 de CartaCapital, em 18 de outubro de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Paz violenta’

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