Mundo
Passo em falso
A convocação de reservistas provoca a primeira cisão entre Putin e a opinião pública do país
Vocês querem a guerra total?”, Goebbels perguntou aos fiéis nazistas quando a Segunda Guerra Mundial rumou ao Sul, para a Alemanha, em 1943. Ele descreveu um Reich cercado por conspiradores cosmopolitas judeus empenhados em sua destruição e defendeu a mobilização total e a adoção de uma ideologia de glória na morte.
Vladimir Putin apresentou sua própria versão (parcial) recentemente. À medida que a guerra da Ucrânia vai para o Sul, rumo à Rússia, ele alegou que as derrotas são o resultado de conspirações cosmopolitas empenhadas em destruir a Rússia e teve de anunciar uma mobilização total (parcial). Putin invocou o senso de missão histórica dos russos e deu a entender que o país está pronto para usar armas nucleares. “Isto não é um blefe”, insistiu.
Putin gosta de imitar o pior da propaganda totalitária do século XX, mas sua mensagem funciona, internamente e no exterior? Ou ele começou a cometer os mesmos erros de propaganda que incorreu no campo de batalha? A propaganda estatal russa respinga o pathos do martírio. Os russos devem amar a dor de provar quão durões são, sobrevivendo a tudo, desde o Gulag até o clima extremo, em comparação com o Ocidente decadente. A propaganda explora incessantemente o mito da Segunda Guerra Mundial, em que os russos são descritos como únicos entre as nações em sua disposição de se sacrificar por uma causa maior.
No aniversário dessa guerra, o Estado organiza marchas nas quais os participantes carregam cartazes com fotos de veteranos mortos, “o regimento imortal”: a morte na guerra traz a imortalidade no céu da propaganda estatal. Há uma bravura suicida, uma implicação de “vamos destruir o mundo inteiro” no bordão popular. “Qual é a razão do mundo, se não há lugar para a Rússia nele?” As ameaças nucleares de Putin são rosnadas com prazer, como se invocassem sadicamente os Deuses da Destruição Total.
Tal como acontece com os nazistas, o interesse próprio racional deve ser engolido pela comunidade do Estado. Mas olhe mais de perto e a imagem fica mais complicada – e vulnerável.
O mito do martírio e da resiliência é suspeito. Os ucranianos têm uma tradição genuína de sofrimento pela causa da libertação nacional – e sucesso por meio do sacrifício. Durante séculos, poetas e rebeldes ucranianos mostraram-se prontos para suportar prisões injustas, execuções e genocídio para lutar por seus direitos nacionais e linguísticos. Muitos heróis da Ucrânia, como os poetas Taras Shevchenko e Vasyl Stus, sofreram prisões e torturas russas, e seu espírito de resiliência subjacente tem sido comprovado no campo de batalha.
Os russos calculam o que é mais arriscado: enfrentar ou apoiar o presidente
De fato, os russos foram mortos em massa, na maioria das vezes por seu próprio Estado, mas, ao contrário dos ucranianos, não celebram seus próprios dissidentes. Estes são odiados e condenados na propaganda estatal e pelo público em geral. A verdadeira coragem é ridicularizada. Em vez disso, a opressão em massa resultou em uma sociedade que celebra o conformismo passivo. A bravura é celebrada na tela, mas como meio de compensar a forma como a sociedade é realmente intimidada. Você é esmagado pelo Estado e depois compensado com heroísmo patriótico na televisão e sadismo em relação aos mais fracos em sua própria sociedade e em outras (neste caso, a Ucrânia).
A grande diferença da propaganda nazista é que, enquanto a primeira era voltada para a ação e a mobilização, a de Putin é apontada para a desmobilização: sente-se no sofá, sinta-se forte a assistir à propaganda e deixe o Kremlin comandar as coisas. Sob a retórica do autossacrifício, a propaganda de Putin tradicionalmente permitiu o interesse próprio ou, ao menos, a autopreservação. Você vai para a guerra jorrando retórica patriótica, mas na verdade está nela porque permite saques e estupros. Você se inebria com a retórica patriótica em casa, mas na verdade seu interesse é poder seguir na corrupção, grande e pequena. O truque de Putin é revestir o interesse próprio com propaganda patriótica. Agora essas duas coisas se dividiram. Ir para a frente significa apenas morte inútil.
Agora está claro que a mobilização “parcial” não é parcial. Os cidadãos são agarrados nas ruas e despachados para a guerra. Nas redes sociais, o sentimento em relação à mobilização é altamente negativo. Nas pesquisas, até os russos mais favoráveis a Putin são contra. A guerra na Ucrânia deveria ser um filme, não um sacrifício pessoal.
A ameaça de guerra nuclear de Putin também pode sair pela culatra. O objetivo é intimidar o Ocidente e a Ucrânia, mas pode perturbar ainda mais seu próprio povo. Se há uma coisa que os russos temem mais do que Putin é a guerra nuclear – e agora é ele quem a traz para perto. Tanto para a elite quanto para os russos “comuns” com quem falei recentemente, o cálculo é sobre se o risco de ir contra Putin é maior do que o risco de ficar com ele. Até agora, rebelar-se parecia ser o maior risco. O tema nuclear muda isso? Muito depende de como a comunidade internacional reage. Precisamos mostrar que quanto mais ele se aproximar de uma ameaça nuclear mais devastadora será a reação: militar, econômica e diplomática. Ele vai perder até a China.
Perder a opinião pública na Rússia não é o mesmo que em uma democracia. Não leva necessariamente a protestos, muito menos a ser derrotado em eleições inexistentes. Mas ser capaz de mostrar que pode controlar a opinião pública, por meio do medo e da propaganda, é um dos emblemas do czarismo. Putin perdeu o controle da situação militar. Perder o controle da propaganda mostrará que sob suas brilhantes botas há pés de barro. Agora marchem com eles. •
*É autor de Nothing Is True and Everything Is Possible: Adventures in Modern Russia.
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1228 DE CARTACAPITAL, EM 5 DE OUTUBRO DE 2022.
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