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Os devaneios de Javier Milei

No anarcocapitalismo do candidato de extrema-direita, o peso é apenas uma sombra do dólar

Os devaneios de Javier Milei
Os devaneios de Javier Milei
O novo presidente da Argentina, Javier Milei. Imagem: Alejandro Pagni/AFP
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Leio no jornal O Globo, edição de domingo 20 de agosto:

“Todos os dias, o jovem argentino Amaru Carrasco, de 24 anos, trabalha das 6 da tarde à meia-noite na rua, com uma bicicleta que comprou usada, como entregador. Amaru estudou alguns anos de jornalismo, mas não terminou o curso numa faculdade particular de Buenos ­Aires, entre outros motivos, pelo alto custo da mensalidade. O jovem mora, com a mãe, no bairro de San Cristóbal, região de classe média da capital argentina. Quando é perguntado se não tem medo de votar no candidato de extrema-direita Javier Milei nas eleições presidenciais deste ano, responde com outras perguntas: ‘Medo de quê? Não tenho proteção nenhuma do Estado, nem férias, nem décimo terceiro. Sofro a violência na rua todos os dias, já roubaram minha bicicleta duas vezes. Tenho medo é de continuar assim e de que nada mude. O que mais pode piorar para pessoas como eu?’”

Javier Milei exprime o desespero e a desesperança diante da crise econômica e social que transtorna a sociedade argentina. Não é de hoje. É longa a trajetória que vem encaminhando a vida dos portenhos para uma situação em que prevalecem a angústia diante das condições do presente e a descrença nas possibilidades de melhora no futuro.

Nesse ambiente social, Javier Milei está a desfiar um rosário de soluções, diz ele, anarcocapitalistas. Elas começam com a dolarização da economia, seguem o seu curso prometendo o desmonte do Banco Central, a criação do Ministério do Capital Humano para substituir os Ministérios da Educação e da Saúde. Essas medidas estariam amparadas na radical abertura financeira e comercial da economia, providências naturalmente acompanhadas por parrudas políticas de austeridade.

Vamos recordar. Em 1991, para fugir às agruras de um sistema monetário destruí­do pela hiperinflação, os argentinos adotaram o regime Conversibilidad. O país estrebuchava nas garras de mais uma crise cambial. É preciso acentuar a expressão “mais uma”. Mais uma, entre as tantas que acometeram a economia dos hermanos no século XX e na aurora do século XXI.

O leitor atento e interessado certamente guarda na memória os prodígios de Martínez de Hoz nos anos 1970. Empolgado com a abundância de petrodólares – tal como seu colega brasileiro Mário Henrique Simonsen – o “Mago de Hoz” promoveu a valorização do peso. As duas experiências de valorização cambial e endividamento externo naufragaram no maremoto da crise da dívida dos anos 1980.

Nascida dos escombros da crise da dívida, a conversibilidade de Domingo ­Cavallo, uma velharia colonial, foi reinventada no início dos anos 1990 para tirar a Argentina da hiperinflação. Um peso valia um dólar. A euforia dos primeiros anos de plata dulce desapareceu com a sucessão de crises financeiras na periferia do capitalismo: primeiro o México, logo depois a Ásia, culminando na desvalorização brasileira de 1999, o começo do fim.

Isto significou a fixação do câmbio, com conversibilidade plena da moeda, tanto na conta de transações correntes quanto na conta que registra o movimento de capitais. Na prática, entregaram as funções de administração do crédito, de provedor de liquidez e de “prestamista de última instância” ao Federal Reserve.

Os defensores da Conversibilidad imaginavam, além disso, que o novo regime cambial iria infundir mais confiança aos investidores estrangeiros, melhorando as condições de financiamento em moeda forte para o país de moeda fraca, não conversível. Sendo assim, os eventuais desequilíbrios em transações correntes poderiam ser, num primeiro momento, compensados pela entrada de capitais, com uma redução dos diferenciais de juros, entre os pagos nos Pampas e os lá de fora.

O compromisso duro e implacável com a taxa fixa e o avanço da abertura comercial permitiriam a operação “da lei de um só preço”, reduzindo progressivamente os diferenciais de inflação e de taxas de juro entre o país e o resto do mundo, tornando cada vez mais importantes as expectativas de valorização dos ativos domésticos, enquanto forma de atração do capital forâneo.

Nesta visão, o “desaparecimento” do risco de desvalorização cambial aumentaria o grau de substituição entre ativos domésticos e ativos estrangeiros. Ou seja, a redução drástica do risco cambial determinaria maior integração entre o mercado financeiro nacional e o mercado internacional, melhorando, aos olhos dos investidores estrangeiros, a qualidade dos “nossos” ativos reprodutivos e dos títulos de dívida emitidos para possuí-los. Se assim fosse, dentro de um prazo razoá­vel, a ação dos novos investimentos e a melhora da eficiência imposta pela concorrência externa levariam à recuperação sólida da balança comercial e à redução do déficit em transações correntes.

O presidenciável exprime o desespero e a desesperança dos argentinos diante da grave crise econômica

Esse regime iria requerer, como é reconhecido, a imobilização da política monetária, na medida em que as condições de liquidez da economia deveriam ser determinadas pelos ingressos líquidos de capitais, com preservação de um volume apropriado de reservas cambiais.

Os deslocamentos da finança em livre movimentação funcionaram na contramão dos devaneios do cachorrinho que inspira Javier Milei. Dia sim, outro também, levaram os detentores de moedas não conversíveis a desfechos desagradáveis. No Volume II do Tratado da Moeda, Keynes afirma que em um sistema monetário internacional dominado pela livre movimentação de capitais “a taxa de juro de um país é fixada por fatores externos e é improvável que o investimento doméstico alcance o nível de equilíbrio”, ou seja, um valor compatível com o melhor aproveitamento dos fatores de produção disponíveis.

A Argentina vem se debatendo entre as ilusões da “dolarização” e a realidade­ da hiperinflação e do declínio econômico. Tudo para continuar merecendo a confiança dos mercados financeiros. Estes, ao que tudo indica, preferem atender aos sinais emitidos pelo Federal Reserve e fogem dos papéis argentinos, enquanto os possuidores de riqueza locais aumentam em suas carteiras a proporção dos ativos denominados em dólares.

Loucura maior é ignorar que a adoção desses regimes cambiais e monetários provoca irreversibilidades: o peso não é fraco nem forte. Simplesmente não existe mais, é apenas uma sombra do dólar.

No fim de 2001, afetada pela desvalorização brasileira de 1999, a aventura da conversibilidade com taxa de câmbio fixa – apimentada com permissão de depósitos em moeda estrangeira – terminou na tragicomédia do “corralito”. Os titulares dos depósitos em moeda forânea correram aos bancos, desesperados, à procura de dólares que estavam, sim, escriturados em suas contas, mas escasseavam em espécie nos cofres. O Banco Central da Argentina, como é sabido, só podia emitir pesos desvalorizados. •

Publicado na edição n° 1274 de CartaCapital, em 30 de agosto de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Os devaneios de Javier Milei’

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