Economia

Eleição na Argentina: entenda os atropelos que explicam uma crise aparentemente interminável

Como a Argentina, que já foi um dos países mais ricos do mundo, erra e acerta na condução de uma economia em caos permanente

Dólar paralelo na Argentina passa dos mil pesos em 10 de outubro de 2023. Foto: Luis Robayo/AFP
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No final dos anos 1960, quando estava exilado na Espanha, Juan Domingo Perón narrou a primeira visita que recebeu, ainda na década de 40, quando chegou ao poder na Argentina. O então mandatário se encontrou com Camille Gutt, à época presidente do recém-inaugurado Fundo Monetário Internacional, e foi convidado Perón a inserir os argentinos na lista de associados.

Depois de ouvir Gutt, Perón disse pensaria sobre o que fazer. Consultou assessores e chegou à seguinte conclusão: “trata-se de um novo engenho putativo do imperialismo”.

Muitas décadas depois, a visão dos argentinos – peronistas e não-peronistas – sobre o FMI é, de um modo geral, a mesma. Percepção construída, a propósito, pela presença constante do fundo em boa parte das muitas crises que a economia nacional viveu desde então, inclusive a atual. Desde 1980, a Argentina já suspendeu cinco vezes o pagamento de sua dívida externa, algo sem precedentes no cenário internacional.

Neste domingo 22, os eleitores vão às urnas para começar a definir o nome do próximo presidente da República, que terá o complexo desafio de resolver uma crise econômica multifacetada.

É financeira, mas, também cambial. Diz respeito às dívidas externas, mas passa por demandas de credores domésticos. Tem como centro o problema da inflação, mas uma das suas hipotéticas soluções envolve exatamente a adoção do dólar como câmbio oficial. A economia, como não poderia deixar de ser, está no centro do debate.

Para o bem e para o mal dos argentinos, nada na crise atual é exatamente novo. Se a inflação está alta, perto dos 140% anualizados, ao menos pode-se reconhecer que já foi bem maior. Se o poder de compra da população está se deteriorando e a pobreza cresce, os dois indicadores já levaram o país ao colapso social na icônica crise de 2001. 

Ao longo das últimas décadas, a Argentina tentou diferentes fórmulas para conter as crises. Converteu o peso em dólar, buscou um sem-fim de auxílios internacionais, aproximou-se (e afastou-se) dos maiores mecanismos de crédito…

Três coisas, porém, não mudaram:

  • a desconfiança generalizada da população sobre o sistema financeiro;
  • a sombra permanente da inflação; e
  • um modelo de Estado que tenta proteger o mercado interno e dá subsídios (energia e transporte público, por exemplo).

Nos debates eleitorais, os principais candidatos apontam diferentes culpados pela situação atual da crise. A Argentina, porém, não chegou ao ponto em que está por causa de medidas de um governo específico. Por isso, a avaliação do passado e as promessas para o futuro imediato poderão definir as eleições.

A Via Crucis econômica

Para compreender a economia da Argentina hoje, um bom caminho é entender o que se passou desde o fim do último regime militar, um dos mais sangrentos da história da América Latina. Bem antes disso, no início do século XX, a Argentina era um dos países mais ricos do mundo: seu PIB per capita batia de frente com o da França e a sua classe média era robusta.

No início dos anos 1980, entretanto, a realidade era outra. O país saía dos escombros do regime comandado por Jorge Rafael Videla não apenas tentando contar as dezenas de milhares de mortos e desaparecidos, mas encurralado por uma dívida em dimensão (até então) nunca vista. Em termos reais, a dívida da Argentina com o FMI saltou de 7 bilhões de dólares em 1976 para 42 bilhões em 1982. O fundo não hesitou em apoiar o regime que fosse, democrático ou militar.

“As taxas de juros naqueles anos eram muito elevadas e os preços internacionais das matérias-primas eram bastante baixos. Foi uma limitação da política econômica”, explica Andrés Borenstein, economista do instituto Econonviews.

Os militares argentinos deixaram ao país uma herança econômica amarga. À semelhança do Brasil, a Argentina lançou mão, no final dos anos 1980, de famosos planos econômicos. Raúl Alfonsín, o primeiro presidente democrático, tentou instalar o “Plano Austral” e o “Plano Primavera”, sem sucesso. As medidas foram a antessala da hiperinflação de 1989, ano em que Carlos Menem assumiu como presidente.

“A história da dívida argentina começa com a ditadura – os juros eram mais baixos na época – e explica bastante os meios pelos quais se aplicaram os mecanismos neoliberais que se instalaram nos anos seguintes”, observa Juan Grigera, economista da King’s College de Londres e especialista em desenvolvimento econômico da América Latina.

O Índice de Preços ao Consumidor chegou a quase 5.000% em 1989, aliviando um pouco em 1990: 2.314%, segundo dados oficiais. Peronista, Menem acreditava que as privatizações poderiam resolver o inchaço do Estado argentino.

O que marcou mesmo o governo Menem, porém, foi a chamada Lei de Convertibilidade, datada de 1991. Como a inflação parecia incontrolável, o ministro da Economia, Domingo Cavallo, estabeleceu uma medida que fixou a paridade entre o peso argentino e o dólar. Uno a uno, como lembram os argentinos. Para que a medida pudesse ser executada, o Banco Central se tornou uma espécie de comitê que fiscalizava cada peso que circulava no país.

Em pouco tempo, a Lei de Convertibilidade pareceu o bastião da economia argentina. A inflação foi controlada, o país estabilizou o seu déficit fiscal e passou a receber mais investimentos. Os ventos de fora também ajudavam: o mundo vivia sob a égide do Plano Brady, que reestruturava dívidas de países sul-americanos, e o dólar parecia, de fato, uma boa âncora cambiária.

A conta veio depois. Diferentemente do Brasil, que, com o Plano Real, apostou em sua nova moeda, os argentinos utilizaram por tempo muito o dólar como “âncora rígida”. 

“A conversibilidade e todas as reformas de Cavallo e Menem modernizaram a Argentina e induziram um grande crescimento da produtividade na economia”, reconhece Borenstein. O economista, porém, diz que “o problema aconteceu na segunda presidência de Menem, em que ele começou a gastar muito e a acumular dívidas. Depois vieram as crises asiática e russa e a desvalorização [cambial] do Brasil”.

Ao final dos anos 1990, em razão da queda da atividade econômica e da fuga de investimentos, o governo de Fernando Henrique Cardoso decidiu desvalorizar o real frente ao dólar. As consequências na Argentina foram imediatas, com recuo massivo do comércio externo, especialmente no setor automobilístico.

O cenário parecia grave, mas nada que pudesse se comparar ao que aconteceu logo no início deste século.

O ‘Corralito‘ e o presidente que fugiu de helicóptero

Cinco presidentes em onze dias. Assim foi o final de 2001 para os argentinos. Antes desse símbolo máximo de instabilidade institucional, a Argentina chegou a ter, naquele ano, 97% de sua dívida externa em dólares. O peso argentino perdia em competitividade. O Banco Central via as reservas se deteriorarem e o governo de Fernando de la Rúa fazia o que podia para reestruturar a dívida. O sinal vermelho se acendeu para a população, que desconfiava do que as instituições financeiras poderiam fazer.

Em 3 de dezembro de 2001, De La Rúa assinou uma medida a impor limites para a retirada de depósitos bancários pela população. Um contingente de pessoas que guardavam as suas economias nos bancos deixou de ter acesso aos recursos. Apelidada de “Corralito“, a regra paralisou o país: setores comerciais inteiros fecharam e a sociedade tomou as ruas. 

Se a população da Argentina é conhecida por protestar pelos mais rotineiros motivos, a crise do “Corralito” levou os atos a outro nível. Entraram para o imaginário do país as cenas das ruas de Buenos Aires tomadas por uma massa que já não sabia mais como sobreviver. Inflamada pela deterioração das condições de vida – seis a cada dez argentinos eram considerados pobres -, a população partiu para os saques aos supermercados.

No imaginário do país, também ficou gravada a cena em que De La Rúa teve de fugir de helicóptero da Casa Rosada. Aquela crise econômica, política, social e institucional não teve precedentes. Em seguida, a Argentina decretou a maior moratória da história: 144 bilhões de dólares. A convertibilidade, que havia completado dez anos, deixou de vigorar. Como resultado, a desvalorização da moeda local agravou ainda mais a pobreza.

Sejam de qual geração for, os argentinos guardam marcas da crise de 2001. Daí resulta, principalmente, a desconfiança sobre o sistema financeiro e as instituições bancárias. 

A crise de 2001 não pesou somente contra a imagem da Argentina, mas do próprio FMI. Em 2003, o fundo chegou a elaborar um documento interno para explicar os erros cometidos. O organismo vivia o paradoxo: fornecia empréstimos que prolongavam situações insustentáveis mas, ao mesmo tempo, caso renunciasse aos financiamentos, poderia levar os países a consequências inimagináveis.

De Kirchner a Alberto Fernández: bonança e novo endividamento

As coisas se sucederam em relativa tranquilidade (ao estilo argentino) após a crise de 2001. Néstor Kirchner e sua sucessora, Cristina Kirchner, apoiaram-se na valorização das commodities vivida na primeira década deste século, como o fez o presidente Lula (PT) durante os seus dois primeiros mandatos. 

“O Brasil viveu um ciclo parecido, mas, no caso da Argentina, houve uma intenção do Fisco Federal de capturar uma parte da renda que entrava no país. Assim, a Argentina conseguiu começar a diminuir a sua dívida”, sintetiza Grigera. “Antes disso, a dívida foi reestruturada por conta, também, do fato de que especuladores do mercado financeiro compraram parte dela.”

Entre 2002 e 2009, a Argentina experimentou uma balança comercial favorável. Foram anos seguidos de superávit fiscal – ou seja, as receitas superaram as despesas. A inflação parecia controlada, embora esse seja um ponto controverso. No país, críticos do kirchnerismo acusam os governos de terem adulterado dados oficiais da inflação. O argumento é respaldado por Borenstein. “O que aconteceu foi que violaram as estatísticas. Foi um delito”, opina.

Aqui entra em cena um dos pontos mais sensíveis do debate econômico argentino: em que medida os governos devem ou não promover investimentos públicos. O chamado “gasto público consolidado” saltou de 26% do PIB no início dos anos 2000 para 46,5% em 2015, quando Cristina deixou o poder. Seu sucessor, o neoliberal Mauricio Macri, tampouco reduziu significativamente o quadro: ao final do seu governo, o índice girava na casa dos 43%.

Há, neste caso, também um aspecto social e cultural. A Argentina tem os maiores subsídios da América Latina. A demanda faz com que o país gaste, atualmente, cerca de 3% de seu PIB em uma série de subsídios, embora o valor já tenha sido mais alto (cerca de 4% do PIB) há dez anos.

A curva da crise atual, entretanto, aconteceu, mais uma vez, em um episódio envolvendo o FMI. Em 2018, Macri recorreu ao maior empréstimo da história do FMI – atualmente, fica na casa dos 45 bilhões de dólares. 

A dívida pública total da Argentina saltou de 85,2% do PIB em 2018 para 103,8% em 2020, segundo o Ministério da Economia. Já de acordo o Instituto Nacional de Estadística y Censos, o consumo da população caiu, na comparação anual, 2,2% em 2018 e 6,1% em 2019. As contas públicas estão no vermelho e esse quadro não se altera desde 2010. No último ano do governo Macri, por exemplo, o déficit primário resultou em uma taxa negativa de 4,4%, conforme o Ministério da Economia. 

Desde que contraiu o empréstimo, a Argentina precisa cumprir uma série de metas estabelecidas pelo FMI: reduzir os gastos públicos, o déficit fiscal e a inflação. Em outros termos, seguir a cartilha neoliberal. Os dados, porém, indicam que o país não chegou perto de atingir os objetivos fixados, o que dificulta as condições de pagamento do empréstimo vigente.

“O programa do FMI foi muito ruim para a Argentina e, na prática, não gerou nenhum tipo de melhoria para a economia”, sintetiza Borenstein. O especialista aponta, também, que a questão não foi tratada de modo adequado pelo presidente Alberto Fernández. “Basicamente, não houve qualquer acerto do governo Fernández.”

A articulação política que levou ao poder a chapa Alberto Fernández/Cristina Kirchner parecia um bom balanço entre alas distintas do peronismo. De saída, o atual governo teve de enfrentar a pandemia de Covid-19 e uma das mais severas secas que a Argentina já conheceu, prejudicando a produção agrícola. 

Ao mesmo tempo em que tentava lidar com as consequências da pandemia, o governo – àquela altura, sob a batuta econômica de Martín Guzmán – passou a imprimir dinheiro. O ritmo de emissão de moeda do governo Fernández é vertiginoso. 

“É preciso observar, também, que o FMI tinha tanto dinheiro emprestado à Argentina, que sequer poderia impor muitas condições ao país, porque a Argentina poderia ameaçar não pagar. Esse era o argumento de Guzmán”, observa Grigera. “Quando vem a pandemia, há maior flexibilidade sobre a dívida.”

Segundo o Banco Central da Argentina, 740,5 trilhões de pesos foram emitidos em 2022. No ano anterior, 498,4 trilhões. Em 2020, 358 trilhões. A curva remete a 2010, quando o ritmo de impressão começou a crescer, mas nada que se compare ao que vem acontecendo nos últimos quatro anos.

Com moeda em excesso, a desvalorização do peso se tornou inevitável. Some-se a isso a ancoragem no dólar e se chega à fórmula para uma inflação que cresce a mais de dois dígitos por mês na Argentina. Há outro fator, ao mesmo tempo real e simbólico, sobre a inflação: ela é uma das faces mais marcantes de uma crise econômica.

Por lei, os salários dos argentinos devem ser reajustados a cada três meses – ou quando for conveniente, caso o prazo tenha de ser menor -, como forma de tentar compensar a inflação. A medida evita um caos econômico e uma deterioração do poder de compra, mas exige mais gastos públicos e não abarca, necessariamente, os trabalhadores informais, que, hoje, predominam no mercado de trabalho. 

Os eixos da crise econômica atual

Como mencionado, o ponto-chave da eleição presidencial é a economia. Isso não exclui, porém, questões internas como casos de corrupção, conflitos ideológicos e disputas de poder entre as províncias.

Em meio a tudo isso, a Argentina segue como referência em termos de legislação sobre direitos humanos. As condições de acesso à educação pública são favoráveis, quando comparadas às dos demais países latino-americanos, incluindo o Brasil. O país pode não ter uma indústria tão competitiva como a brasileira, mas vem, ano a ano, tornando-se atrativa para a China.

A realidade concreta, quando a pobreza cresce, reforça o clamor por respostas reais e planos viáveis. A inflação é um fenômeno sensível semanalmente na Argentina, especialmente no que se refere aos alimentos.

Há décadas, o páis tem no dólar um tipo de sustentáculo cambial. É improvável que essa realidade mude, a não ser que ela se torne ainda mais exacerbada, como seria no caso de Javier Milei, o principal candidato à Casa Rosada, conseguir colocar em prática o seu plano de dolarização. “Há bens e serviços que já estão em dólares na Argentina, a ponto de que muitos contratos de aluguel (em Buenos Aires, principalmente) já estão em dólar”, diz Grigera.

Quem quer que seja eleito terá de lidar com as consequências da crise atual. Os baixos níveis de reservas financeiras, por exemplo, estarão na agenda do futuro presidente logo no início, assim como a manutenção ou não dos subsídios e a ânsia por melhorias de uma população acostumada a uma economia novelesca.

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