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O vírus e o dragão

A política de ‘Covid zero’ impõe sacrifícios extremos à populosa, rica e cada vez mais impaciente Xangai

Sem tolerância. Drones patrulham as ruas vazias da cidade de 25 milhões de habitantes, à caça de quem viola as regras da quarentena, enquanto funcionários públicos distribuem suprimentos aos confinados. Ainda assim, a população se sente abandonada e vulnerável - Imagem: Redes sociais e STR/AFP
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Por volta do meio-dia da terça-feira 12, Yu Wenming, um homem de 82 anos de Xangai, ligou para o comitê residencial local para pedir socorro. “Já usei todos os meus remédios. Também não tenho nada para comer. Estou me sentindo péssimo”, disse Yu, que testou positivo para Covid-19, ao secretário do partido, Zhang Zhen.

Zhang ouviu pacientemente. Disse que já havia encaminhado o caso aos seus superiores e que não havia nada que pudesse fazer. “Você quer dizer que eu devo esperar aqui até morrer, então?”, perguntou Yu. Zhang respondeu com um discurso raivoso. Reclamou que ele também estava completamente impotente nessa situação: “Também estou preocupado. Também estou com raiva. Mas não há nada que possamos fazer… Também não sei o que fazer”. Zhang revelou que os pedidos de socorro vinham se acumulando nos últimos dias, mas que seus superiores não tratavam do assunto com a devida urgência. “Talvez um dia, quando eu não aguentar, eu desista. Esse dia chegará logo?”

Em termos econômicos, calcula-se que o equivalente a 40% do Produto Interno Bruto da China esteja sob alguma forma de bloqueio. Em Xangai, metrópole conhecida por sua agitação e às vezes chamada de “Paris do Oriente”, uma quinzena de confinamento produziu uma sensação de desesperança e impotência entre seus 25 milhões de habitantes.

A escassez de alimentos forçou alguns moradores a recorrer à troca. Uma enxurrada de críticas à resposta das autoridades à crise deixou os normalmente eficientes censores da internet incapazes de acompanhar o ritmo. Online, muitos moradores questionam não apenas a forma como o surto tem sido tratado, mas a explicação oficial de Pequim, que enfatiza o bem coletivo. Imagens de protestos localizados foram publicadas nas redes sociais chinesas. Elas foram retiradas pelos censores, mas reapareceram em plataformas ocidentais como Twitter e ­Facebook, ambas bloqueadas na ­China. “Todos os dias há incidentes que quebram o nosso limite”, escreveu um “morador de Xangai normal”, num artigo amplamente divulgado no Weibo intitulado “A paciência de Xangai atingiu o limite”.

A quarentena levou à escassez de alimentos e insuflou a insatisfação dos moradores

Apesar do crescente descontentamento, há, no entanto, poucos sinais de que as autoridades vão mudar de rumo. Contos perturbadores de autoridades exaustas têm sido amplamente lidos online nos últimos dias, incluindo um sobre um agente de saúde pública local de 55 anos, Qian Wenxiong, que teria tirado a própria vida em seu escritório, por causa da pressão que sofria. As autoridades confirmaram que ele morreu na quinta-feira 14, e a polícia não negou os rumores sobre a causa.

Hu Xijin, ex-editor do tabloide estatal chi, disse em um comentário que a morte de Qian intensificou a impressão de que a luta contra a Covid em Xangai estava a produzir efeitos “avassaladores” nas autoridades. Mas ele insistiu que, apesar da tragédia, Xangai “deve conseguir a liberação da Covid”, para benefício do país.

Suas palavras foram repetidas nos últimos dias pelos líderes mais importantes da China. Na quarta-feira 13, o presidente Xi Jinping disse aos seus funcionários: “É necessário superar os pensamentos paralisantes, o cansaço da guerra… e a mentalidade frouxa”. Na sexta, o vice-primeiro-ministro Sun ­Chunlan reiterou o compromisso inabalável do governo com o “zero Covid”.

Poucas alternativas. O confinamento rigoroso substitui a vacinação em massa – Imagem: STR/AFP

As tensões entre a linha-dura das autoridades e os protestos populares contra a escassez de alimentos expuseram, porém, um dilema para Pequim, segundo a professora Jane Duckett, antiga analista da política e sociedade de Xangai na Universidade de Glasgow, na Escócia. “A crise de abastecimento de alimentos em Xangai foi uma questão-chave que surpreendeu os moradores e os levou a questionar a estratégia anti-Covid”, disse. “O problema é que, sem uma melhor logística no fornecimento de alimentos e outros itens essenciais, há pressão para relaxar as restrições, mas um relaxamento provavelmente levará à propagação do vírus e a cenas como as de Hong Kong. Protestos e instabilidade parecem inevitáveis, de qualquer maneira.”

Especialistas dizem que, apesar dos crescentes pedidos no exterior para que a China abandone sua política de Covid, o histórico irregular de Pequim na vacinação de sua população vulnerável – em particular aqueles com mais de 60 anos – representaria um perigo ainda maior para o seu sistema de saúde inadequado.

Até 5 de abril, mais de 92 milhões de cidadãos chineses com 65 anos ou mais ainda não tinham recebido três doses de vacina, deixando-os em maior risco de contrair sintomas graves ou morrer pelo vírus. Mais preocupante ainda, 20,2 milhões daqueles com 80 anos ou mais também não foram totalmente vacinados.

Essas realidades, juntamente com o uso de uma vacina caseira comparativamente menos eficaz, tornaram as futuras escolhas políticas da China ainda mais limitadas. “A liderança chinesa está encurralada”, disse Yanzhong Huang, integrante sênior do grupo de pensadores Conselho Sobre Relações Exteriores, com sede em Nova York. “Mas, em vez de pedir a toda a população, jovens e idosos, que fique em casa ao mesmo tempo, Pequim deve se concentrar em persuadir seus idosos a receber três doses da vacina e disponibilizar as pílulas antivirais primeiro. Eles também devem aprovar a vacina de mRNA da BioNTech para distribuição nacional imediatamente.”

Para a liderança chinesa, a insistência em zero Covid também pretende demonstrar a superioridade do sistema político da China, acredita Duckett. Nos últimos dias, Xi Jinping voltou a exaltar a política em um evento que celebrou os Jogos Olímpicos de Inverno, apesar dos relatos de escassez de alimentos num dos mais importantes centros financeiros do país. “Como alguns atletas estrangeiros disseram, se houve uma medalha de ouro por responder à pandemia, então a China a merece”, disse o presidente, segundo a agência de notícias Xinhua.

Com milhões de idosos sem vacinas, resta à China endurecer as restrições

O que aconteceu em Xangai e em outras partes do país terá consequências políticas no período que antecede o 20º Congresso Nacional do Partido Comunista, no fim deste ano, de acordo com Victor Shih, especialista em política de elite chinesa na Universidade da Califórnia, em San Diego. “O partido normalmente gostaria de um ambiente econômico e político tranquilo para o congresso, mas a Covid-19 e as diferentes maneiras como as cidades chinesas respondem a ela criarão um ambiente muito desafiador para o partido.”

Para os moradores de Xangai, que têm fama de não se interessarem por política, a questão premente agora é superar este período. No fim de sua ligação na terça-feira, Yu fez uma pergunta a Zhang, o secretário local do partido: “É assim que é realmente o nosso país?”

“Não sei como Xangai acabou assim”, disse Zhang. Ele suspirou e encerrou a ligação. “Sinto muito, senhor Yu… Adeus.”

Uma gravação da conversa logo viralizou no WeChat, antes que os censores a retirassem. Na quinta-feira 14, a mídia estatal disse que Yu tinha sido hospitalizado. •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1205 DE CARTACAPITAL, EM 27 DE ABRIL DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O vírus e o dragão”

 

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