Mundo

O veneno da serpente

Impulsionada por um renovado ódio à migração, a extrema-direita recupera terreno no continente

Aval. A Justiça italiana libera o gesto fascista dos militantes do Fratelli d’Italia – Imagem: Redes sociais
Apoie Siga-nos no

“Acredito que nunca vi um lugar mais deprimente dentro de uma grande capital europeia do que Martim Moniz”, começa o perfil “r/portugueses” em um fórum de discussão na internet. “Imagine só: a 5 minutos de basicamente todo o corpo turístico de Lisboa, você ter, quase que no coração da cidade, uma pequena ‘Índia’. Que fique bem claro que a questão racial não é o problema aqui, mas sim o fato de fazerem aqui o que eles muito provavelmente faziam no país deles (…) As ruas são extremamente sujas. Em todos os cantos há um morador de rua ou bandos de indianos a olhar as mulheres com intenções, a conversar aos berros e fazer muito barulho.”

O “r/portugueses” pode esconder um morador de carne e osso “indignado” com a mudança etnográfica de uma região tradicional de Lisboa. Ou pode ser um avatar, uma personagem criada pelas cada vez mais influentes agremiações de extrema-direita no país, para insuflar os ânimos nas redes sociais. Não importa. O fato é que a estratégia tem funcionado. Em 3 de fevereiro, cerca de um mês antes das eleições gerais antecipadas, grupos radicais prometem ocupar a praça, batizada com o nome de um herói do cerco em 1147 da cidade que viria a ser a capital da nação, em protesto contra a “islamização” de Portugal. “Se houver algum problema, teremos de fechar as nossas lojas. Não queremos lutar contra eles”, afirma Rana Taslim Uddid, presidente da comunidade de Bangladesh.

O risco de “islamização” de Portugal, balaio no qual os indianos são indevidamente incluídos, ou a suposta degradação da Praça Martim Moniz são uma invenção da extrema-direita. Embora haja um aumento recente das comunidades do chamado hindustão, paquistaneses, bengalis, nepaleses e outros formam um contingente irrisório de estrangeiros, em grande parte concentrados na capital. Somados, mal chegam a 10% dos cerca de 800 mil imigrantes registrados, no qual predominam brasileiros, cabo-verdianos e britânicos. Na lista de nações europeias com maior fluxo de forasteiros, Portugal ocupa a 18ª posição. Quem vem de fora contribui para o superávit do sistema de aposentadoria, em um país envelhecido, e o aumento da natalidade. A criminalidade é irrelevante, ainda que a condenação, na segunda semana de janeiro, de dois iraquianos suspeitos de terrorismo tenha atiçado a islamofobia. Ao mesmo tempo, a Praça Martim Moniz nunca foi o paraíso descrito por alguns portugueses, reais ou inventados pelos extremistas, saudosos de um passado glorioso não atestado que as informações históricas teimam em contestar. Há uma ou duas décadas, a região não era mais limpa ou segura, apenas menos diversa. O que há de diferente é o nome dos proprietários dos estabelecimentos. Manuéis e Joaquins passaram a dividir espaço com Qasims e Rajs, em um tipo de reconfiguração comum em grandes cidades, a exemplo da Chinatown em Los Angeles ou do Bairro da Liberdade, em São Paulo.

Ao sabor do vento. Em Portugal, Ventura adapta o discurso ao momento – Imagem: Pedro Rocha/AFP

O medo da migração que rouba empregos, sobrecarrega os serviços públicos, vive à custa de quem paga impostos e ameaça as tradições, associado a uma revolta difusa contra um Estado e políticos supostamente apodrecidos pela corrupção, tornou-se o motor da ascensão meteórica do Chega, o partido de extrema-direita português. Criada em 2019 por um ex-comentarista esportivo da tevê, André Ventura, a legenda experimenta saltos quânticos na preferência do eleitorado, submetido a sucessivas crises de governabilidade. Era irrelevante em 2020, alcançou os 7% nas legislativas de 2022 e agora beira os 15%, segundo as mais recentes pesquisas, ou mais: 18%, conforme levantamento do instituto Consulmark2 divulgado no sábado 20. Em 10 de março, os portugueses voltam às urnas para eleger um novo primeiro-ministro, após o governo do socialista António Costa ser alvejado por uma denúncia de corrupção ao estilo lavajatista feita pelo Ministério Público. Uma semana depois de o caso vir a público, o juiz do processo deitou por terra a maioria das acusações por falta mínima de indícios e com duras críticas aos procuradores, mas era tarde. O estrago político e midiático estava feito. Caso confirme nas urnas as sondagens, o Chega de Ventura, aliado do clã Bolsonaro, se consolidará como a terceira força no Parlamento, atrás do PSD, e fará parte de qualquer cálculo de governabilidade à direita.

Ventura é um dos símbolos do novo estilo extremista por trás da onda do populismo de direita que voltou a se alastrar pela União Europeia. Defensor, na aurora do partido, da castração química e da prisão perpétua, o líder do Chega tem moldado o discurso na direção do vento da opinião pública. Ultraliberal, à moda de Javier ­Milei, no início da carreira, derivou para uma posição centrista ao perceber que os portugueses de qualquer classe e ideologia apreciam a “proteção” do Estado. O problema, afirma neste momento, é a corrupção generalizada, que quantifica ao sabor da plateia e do próprio entusiasmo. Ora são 8 bilhões de euros, no dia seguinte, 20 bilhões. Critica o socialismo, mas se recusa a usar a expressão “marxismo cultural”, de pouco efeito retórico. Também trocou a obsessão pelos ciganos, uma comunidade de 52 mil indivíduos há séculos integrada à cultura portuguesa – por outro tipo de “vilão”, a turma da Martim Moniz, “aqueles que não querem se integrar, não se esforçam para aprender a língua”, acreditam em outro Deus e, segundo um preconceito corrente entre eleitores do Chega, “empesteiam” as ruas das cidades com o cheiro do caril, ou curry.

Inimigos. Alemães protestam contra a xenofobia da AfD. Na França, Le Pen celebra a nova lei de migração – Imagem: Stefan Muller e Valentine Chapuis/AFP

O combate ao que acreditam ser uma migração desordenada e selvagem e a consequente ameaça ao “modo de vida europeu”, conceito vago em um continente caracterizado por profundas divisões étnicas e linguísticas, unificam a extrema-direita por todos os cantos. Na Alemanha, os massivos protestos contra a proposta da AfD de expulsar sem distinção todo e qualquer migrante, incluídos os descendentes nascidos no país, podem ser lidos de duas formas. Por um prisma, marcam a reação de uma maioria moderada contra a xenofobia. Por outro, demarcam a influência de um populismo de direita de raízes nazistas que beira os 20% das preferências eleitorais e não pode mais ser ignorado.

Na Itália, o governo de Giorgia ­Meloni alcança 29% de aprovação popular, atravessou o primeiro ano sem grandes sobressaltos e coleciona vitórias importantes no Congresso, enquanto os herdeiros de Mussolini se sentem à vontade para expor suas ideias. A Justiça italiana acaba de reafirmar a liberdade dos neofascistas de fazer em público a saudação característica, braço e mãos estendidas acima da cabeça – um gesto que nunca desapareceu dos eventos do Fratelli d’Italia, mas que se tornou recorrente e grandiloquente desde a vitória nas urnas. Meloni, tudo indica, aprendeu com os erros de Matteo ­Salvini, com quem disputa a liderança do populismo de direita. Sua abordagem de temas sensíveis, a começar pela migração, é tática, evita o confronto direto com as instituições, em particular com o Poder Judiciário. Onde o histriônico Salvini fracassou, Meloni se equilibra, o que faz dela um ponto de referência da extrema-direita nas eleições ao Parlamento Europeu marcadas para junho.

Há um processo contínuo de substituição, no jogo político, da direita tradicional pelo extremismo

Eis outro ponto de inflexão do populismo europeu. Os partidos xenófobos e nacionalistas abandonaram ou suavizaram a eloquência contra a União Europeia à medida que deixaram de representar uma posição marginal no espectro político e viraram uma alternativa real de poder. Apesar de Alice Weidel, líder da AfD alemã, ter declarado, na segunda-feira 22, ao jornal britânico Financial Times que o Brexit, a saída do Reino Unido da UE, serve de inspiração à legenda, o populismo, de forma quase homogênea, está mais empenhado em moldar o sistema do que em abandoná-lo. Uma estratégia bem-sucedida. Segundo as projeções, as duas principais correntes de extrema-direita no Parlamento Europeu vão experimentar um crescimento no número de cadeiras na próxima eleição, reflexo das disputas locais. O Identidade e Democracia pode chegar a 93 deputados, enquanto os Conservadores e Reformistas Europeus somariam 80. As pesquisas apressaram as conversas em torno de uma possível fusão entre os grupos, o que tornaria a extrema-direita unificada a terceira força em Bruxelas, atrás do centro-direita e do centro-esquerda.

A nova onda transborda das urnas. Pesquisador do ISCTE, em Lisboa, o italiano Riccardo Marchi descreve uma mudança conceitual, influenciada pelo que prefere chamar de “direita radical”, na abordagem europeia à migração. “Até pouco tempo, o debate concentrava-se nas cotas de imigrantes que cada país iria aceitar ou conseguiria suportar. Agora, a discussão caminha para a adoção de uma política comum de reforço das fronteiras contra a entrada ilegal.”

Uma série de decisões corrobora a descrição de Marchi. O Parlamento e o Conselho Europeu chegaram a um acordo para rever – e tornar mais rígidas – as leis de migração. O Partido Conservador no Reino Unido, à revelia dos protestos dos organismos de direitos humanos, decidiu manter o projeto de deportação de migrantes indesejados para Ruanda, em troca de pagamento ao governo africano. E a França da Liberté, Égalité, ­Fraternité cedeu às pressões da Rassemblement ­National, partido de Marine Le Pen, o mais popular do país, com cerca de 30% das intenções de voto. De nada adiantou a justificativa canhestra do presidente ­Emmanuel Macron de apelar à tese do mal menor – se não fosse feito imediatamente, seria pior no futuro, em um provável governo de extrema-direita. O endurecimento das leis de migração aprovadas pelo Congresso francês na virada do ano são o que os analistas sérios dizem ser: uma vitória inegável de Le Pen. Entre os pontos mais polêmicos da legislação constam o bloqueio do acesso a serviços públicos, saúde em particular, a desempregados e o fim da nacionalidade automática a filhos de estrangeiros (o pedido deverá ser feito entre os 16 e os 18 anos e o requerente precisa manter a “ficha limpa”).

Dedicado ao estudo dos movimentos radicais na política e autor de um livro controverso sobre o Chega – há quem o acuse de minimizar os efeitos da ascensão do partido de Ventura –, Marchi projeta uma alteração irrefreável na concorrência e nas regras do jogo político europeu. “A direita radical, com sua agenda, vai ocupar o espaço da direita tradicional. Em pouco tempo, será chamada somente de direita.”

Não se trata exatamente de uma novidade. Como agora, o extremismo foi normalizado na década de 30 do século passado. As consequências todos conhecem. •

Publicado na edição n° 1295 de CartaCapital, em 31 de janeiro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O veneno da serpente’

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo