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O que será do peronismo após a vitória de Javier Milei?

O mais importante movimento político da Argentina segue liderando o Parlamento e representando poderosos setores, mas enfrenta embates internos e parece depender de uma renovação

Imagem: Juan Mabromata/AFP
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O mais recente capítulo da história política da Argentina começou a ser escrito quando Javier Milei decidiu lançar-se à presidência do país. Venceu, impondo revés ao peronista Sergio Massa, mas não só. Sua chegada ao poder remodela o front político do país, mudando personagens de lugar e impondo uma nova e inusitada correlação de forças.

Milei ganhou o mando, mas o peronismo está longe de sair de cena. De volta à oposição, o mais importante movimento político da Argentina segue liderando o Parlamento e representando poderosos setores, mas parece depender de uma renovação para se manter relevante e retomar o poder.

O que é o peronismo?

Entre a chegada de Juan Domingo Perón (1895-1974) ao poder e a recente vitória de Milei, o peronismo venceu dez eleições presidenciais na Argentina. Mesmo derrotado (ou derrubado por golpes), sempre esteve perto do poder.

Este complexo movimento de base popular – de difícil comparação com o Brasil e indecifrável até mesmo para muitos argentinos – está mais um sistema político em si, repleto de disputas internas e com forte senso de pragmatismo.

O pragmatismo deve exigir que o peronismo orbite em torno de Axel Kicillof, reeleito governador de Buenos Aires

Ao longo de seus mais de 80 anos de existência, o peronismo acolheu esquerdistas e direitistas, conservadores e liberais, sindicalistas e empresários. Já privatizou empresas para, depois, reestatizá-las. Sob seu manto, já governaram a Argentina figuras distintas como Cristina Kirchner e Carlos Menem (1989-1999).

Seus apoiadores, dos mais inflamados aos mais moderados, celebram como legado peronista a criação de um Estado de Bem-Estar Social na Argentina, com fortalecimento da educação pública e incentivo à segurança trabalhista da população. Seus críticos, por outro lado, criticam o que chamam de populismo, o quase messianismo de alguns dos seus líderes e a burocracia estatal estimulada, em parte, por lideranças do movimento.

O futuro imediato

“Apesar da derrota, o peronismo terá uma uma grande quantidade de poder”, avalia Juan Bautista Lucca, pesquisador do Centro de Estudos Comparados da Universidad Nacional de Rosário. “Não só porque obteve 44% dos votos na eleição presidencial, como pelo fato de que terá maioria na Câmara e no Senado, e o governador mais importante da Argentina”, completa, em referência a Axel Kicillof, reeleito governador da província de Buenos Aires.

Por conta dessa configuração, Juan Bautista Lucca considera que haverá um peronismo ‘muito ativo’ nos próximos anos. “Olhando o peronismo por dentro, o kirchnerismo – que representa cerca de 30% do movimento – será, claramente, a principal força de oposição.”

Na Argentina, a Câmara de Deputados tem 257 representantes, eleitos proporcionalmente pelas 24 províncias. O Senado, com 72 membros, elege seus parlamentares para mandatos de seis anos. Recentemente, houve eleições que renovaram 130 assentos na Câmara e 24 no Senado.

A nova configuração do legislativo argentino mostra a coalizão Unión Por La Patria, de tendência peronista, com maioria em ambas as Casas. Na Câmara, a coalizão tem 108 assentos, seguida por 38 do La Libertad Avanza, ligado a Milei, e 93 do  Juntos Por El Cambio, de centro-direita. No Senado, a Unión Por La Patria terá 35 cadeiras, dividindo o espaço com o Juntos Por El Cambio (24 cadeiras), libertários (7), peronismo não kirchnerista (3) e outros 3 assentos minoritários.

O governador reeleito da província de Buenos Aires, Axel Kicillof. Foto: Juan Mabromata/AFP

Compartilha da mesma impressão Matías Capeluto, diretor executivo da Casa Patria Grande, um órgão da Secretaria da Presidência da Argentina criado em 2011 com o objetivo de desenvolver políticas para promover a integração de países sul-americanos. Por conta do resultado deste ano, Capeluto acredita que “o peronismo fará uma oposição muito robusta no Congresso”. Ele chama a atenção para o fato de que a configuração vai impor dificuldades para que Milei promova reformas estruturais na Argentina. 

“Será muito difícil que algumas reformas estruturais, no marco democrático, possam acontecer. Friso o ‘marco democrático’ porque desconhecemos, até o momento, como Milei vai se comportar de agora em diante, e de que maneira vai governar. Ele tem um respaldo popular muito forte, mas, institucionalmente, o que ele propõe não é fácil de conseguir, já que exige um consenso de toda a população. Se ele fizer o que diz que vai fazer, não terá consenso da população, pelo contrário”, completa.

As lições da derrota

Apesar do bom saldo no legislativo, não foi pequena a derrota peronista nas eleições presidenciais, vencido sob o discurso de aniquilação do rival Milei, que se aproveitou de uma estafa da população não apenas com a delicada situação econômica, mas com as elites políticas do país.

“O peronismo conhece muito de vitórias e derrotas. Essa é uma grande derrota, que tem um mensagem muito grande”, aponta Capeluto. Segundo ele, o peronismo deixou de atualizar a sua agenda política nos últimos anos. “Deixou de escutar as demandas do povo. E tentou impor a sua própria agenda, que não era uma agenda que a sociedade estava reivindicando.”

Para ele, a desconexão ficou evidente em relação à juventude argentina. São jovens, por exemplo, que embarcaram nas ideias de Milei como forma de mudar, a qualquer custo, a realidade argentina. Parte desse eleitorado nasceu no final dos anos 1990 e início dos anos 2000 – ou seja, cresceu em uma Argentina sempre envolta em sucessivas crises econômicas. 

Ato peronista em frente ao Congresso da Argentina. Foto: Juan Ignacio Roncoroni/AFP

Para Capeluto, porém, essa geração de apoiadores de Milei deverá ser a mais afetada pelo que Milei propõe. O diretor da Casa Patria Grande não acredita que essa juventude seja, necessariamente, anti-peronista, mas que eles “não compartilham a agenda que o peronismo está representando”. “Daqui em diante, deverá haver uma profunda reflexão sobre como o peronismo poderá se aproximar dessa geração”, aponta.

O peronismo no futuro: entre a discórdia e a renovação

Se o peronismo puder ser definido por duas marcas, elas seriam a multiplicidade e o pragmatismo. Com a típica ironia argentina, uma das definições do movimento vem de uma frase atribuída ao próprio Perón: “os peronistas são como gatos: quando gritamos, acham que estamos nos destroçando, mas na verdade estamos nos reproduzindo”.

As divisões inerentes ao movimento, entretanto, podem fazer com a recuperação do peronismo não seja tão uniforme nos próximos anos. O que pode, inclusive, gerar custos políticos. “Historicamente, quando não está no poder, uma parte do peronismo mais conservador tenta ingressar no governo de ocasião. Isso pode acontecer, no caso do governo Milei, com o peronismo mais ligado ao interior da Argentina”, explica Juan Bautista Lucca.

“Ou seja, também há um setor mais tradicional e conservador do peronismo que não terá problemas com o governo Milei, porque, basicamente, precisa dialogar com o governo para que possa obter os recursos que são transferidos para as províncias.”

Evita, mulher de Perón, ícone do passado – Imagem: Arquivo Nacional

Em termos eleitorais, esse pragmatismo deverá exigir que o movimento gire, nos próximos anos, em torno de uma liderança, que toma forma na figura de Axel Kicillof, reeleito em primeiro turno para governar Buenos Aires, com quase 45% dos votos. A província é a maior do país e concentra a maior quantidade de recursos distribuídos pelo governo nacional, em uma fórmula federativa parecida com a adotada no Brasil.

Hoje aos 52 anos, Kicillof foi ministro da Economia entre 2013 e 2015, durante o segundo mandato de Cristina. Em 2019, a sua vitória representou a volta do peronismo à principal província do país, que, há anos, é um reduto do movimento. O fato de ser apontado como principal nome do peronismo para os próximos anos poderá lhe trazer benefícios, mas, também, desafios.

“Kicillof terá um desafio duplo: ser a principal voz de oposição, negociando com parlamentares para que não apoiem Milei, mas, ao mesmo tempo, negociar com Milei constantemente sobre recursos para Buenos Aires”, explica Juan Bautista Lucca.

“Todas as províncias dependem da divisão dos recursos que o Estado federal faz. Isso é um fator importante para as negociações dos apoios parlamentares”, completa o pesquisador. 

Fazer oposição ao mesmo tempo que negocia é uma marca do movimento, nas vezes em que não esteve no poder. “No peronismo, essa dupla atividade é histórica, desde os tempos de Perón. Fazer oposição e negociar, fazer oposição e negociar”, indica o pesquisador. 

Entretanto, o que resta saber é como essa via de mão poderá ser encarada pelo kirchnerismo. “Nos próximos anos, se a negociação for demasiada com o governo, corre o risco de perder a base de apoio, que é o kirchnerismo”. Mais um sinal do complexo maquinário do peronismo, que, fora da Casa Rosada, continuará como personagem central da política argentina.

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