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O que está em jogo na eleição deste domingo no Uruguai, onde a extrema-direita não se cria
A Frente Ampla, de esquerda, desponta como favorita a vencer, após perder a disputa de 2019


Um ano depois de os sul-americanos roerem as unhas na caótica eleição que levou o ultradireitista Javier Milei à Presidência da Argentina, chegou a vez de os uruguaios irem às urnas – em um cenário muito menos dramático. Ao contrário de seus vizinhos, Montevidéu preza pela estabilidade, uma característica marcante do pleito deste ano.
Mais de 2,7 milhões de eleitores votarão para presidente neste domingo 27, além de definirem 30 cadeiras no Senado e 99 na Câmara dos Deputados.
A se confirmar a tendência, nenhum candidato conquistará mais de 50% dos votos válidos e haverá segundo turno, a ser disputado em 24 de novembro. O vencedor terá um mandato de cinco anos, com posse em 1° de março de 2025.
O atual presidente é Luis Lacalle Pou, um político de centro-direita do Partido Nacional. Apesar de bem avaliado, com uma aprovação na casa dos 50%, seu apadrinhado, Álvaro Delgado, aparece distante de Yamandú Orsi, correligionário de Pepe Mujica.
Eis os candidatos competitivos:
- Yamandú Orsi, da Frente Ampla (esquerda). É o favorito, segundo as pesquisas. O partido governou por três mandatos seguidos, com Tabaré Vásquez (2005-2010), Mujica (2010-2015) e novamente Vásquez (2015-2020);
- Álvaro Delgado, do Partido Nacional (centro-direita). É o candidato de Lacalle Pou, mas sofre com problemas na transferência de votos. Aparece longe de Orsi.
- Andrés Ojeda, do Partido Colorado (direita). Apresenta-se como um outsider e é comparado a Milei em suas estratégias de comunicação. Não se encaixa, porém, na definição de extrema-direita.
Uma pesquisa Factum publicada pela versão uruguaia do jornal El País na quinta-feira 24 apontou a Frente Ampla, de Orsi, com 45,5% das intenções de voto, ante 25,1% do Partido Nacional, de Delgado, e 15% do Partido Colorado, de Ojeda. Nenhuma outra legenda chega a 5%.
A tendência, portanto, é que Orsi dispute o segundo turno contra o candidato governista, mas não se descarta a ascensão de Ojeda.
Álvaro Delgado, candidato a presidente do Uruguai. Foto: Pablo Porciuncula/AFP
Ao contrário do Brasil de Jair Bolsonaro (PL), da Argentina de Milei e do Chile de José Antonio Kast [que chegou ao segundo turno em 2021], o Uruguai não teve de amargar o crescimento da ultradireita. Além disso, Montevidéu tende a rechaçar a entrega de seus setores estratégicos à iniciativa privada, explicou a CartaCapital o uruguaio Lihuen Nocetto, doutor em Ciência Política e professor assistente na Universidade Católica de Temuco, no Chile.
“No Uruguai não funciona nenhum tipo de proposta muito liberal”, resumiu. “A tradição estatista do país está bem enraizada desde o início do século XX, e todos os projetos que tentaram liberalizar fracassaram.”
O sistema político uruguaio não permite reeleições diretas, razão pela qual Lacalle Pou não concorrerá. Ele, porém, pode tentar voltar ao cargo em 2029.
Após o baque da pandemia de Covid-19, o Produto Interno Bruto do Uruguai deve crescer 3,2% neste ano, segundo a projeção do Fundo Monetário Internacional. Para 2025, a expansão tende a ser de 3%.
“Se você vier de fora do Uruguai, não conseguirá encontrar grandes diferenças entre os candidatos, porque também não existem grandes propostas disruptivas”, diz Nocetto. “Há uma ideia de que o Uruguai tem de seguir o rumo, com alguns detalhes.”
Além das eleições, haverá um plebiscito para modificar o sistema de seguridade social, promovido pela central sindical Pit-Cnt, com setores da Frente Ampla como o Partido Comunista e o Partido Socialista. Os candidatos não endossam a emenda constitucional, que tende a ser rejeitada.
A CartaCapital, Lihuen Nocetto apresenta os principais candidatos, explica por que a extrema-direita não prospera no Uruguai e projeta o futuro das relações do país, a terceira economia do Mercosul, com o Brasil, o principal integrante do bloco.
Leia os destaques da entrevista:
CartaCapital: Como definir Yamandú Orsi, em comparação com lideranças progressistas da região, como Lula e Gustavo Petro?
Lihuen Nocetto: Basicamente, Orsi é um candidato de centro-esquerda que vem de um partido com grande disciplina partidária, a Frente Ampla. É uma legenda de centro-esquerda, mas com a ressalva de que está muito mais enraizada no movimento sindical e no movimento social do que, por exemplo, o PT. Lula tem muito mais margem de manobra para trabalhar por fora de suas bases.
A Frente Ampla, como partido, se mantém muito mais vibrante e tem uma militância muito ativa que pode, portanto, restringir os movimentos pragmáticos que os presidentes costumam fazer.
Orsi é um homem moderado, pragmático, mas os seus ajustes programáticos em um contexto, por exemplo, de queda ou de baixo crescimento terão um duro confronto na Frente Ampla e nos setores populares, que pressionarão por uma agenda mais progressista.
Ele, como o pragmático que é, pode ser muito moderado, mas a Frente Ampla está um pouco mais à esquerda, um pouco mais ligada ao movimento popular e às suas demandas.
CC: Por que o partido do governo escolheu Delgado? E por que, apesar de Lacalle Pou ser bem avaliado, seu candidato está longe de Orsi nas pesquisas?
LN: Dada a tendência de longo prazo do país, é bastante evidente que o próximo governo sofrerá de determinantes estruturais difíceis – crise global, basicamente.
Do ponto de vista estratégico, Lacalle Pou quer voltar ao governo em 2029. No fundo, ele nunca quis que o Partido Nacional voltasse ao poder agora, na minha opinião. Esta não foi a primeira opção dele, a primeira opção foi deixar o governo para a Frente Ampla administrar nesta difícil conjuntura internacional e depois voltar sobre “ombros de gigantes”, com os louros das glórias passadas.
Foi mais ou menos o que aconteceu com Tabaré Vázquez (2005-2010). Naquele caso, quando Mujica assumiu (2010-2015), o país continuou a crescer. Portanto, havia boas razões para o mesmo partido continuar a governar.
Por um lado, não creio que Lacalle Pou estivesse muito interessado em que a coligação continuasse no poder. Em segundo lugar, entrega ao seu aliado uma derrota quase certa.
CC: Por que, então, optar por Delgado?
LN: Não há outra liderança no Partido Nacional, depois da morte de alguns políticos, por exemplo Jorge Larrañaga, em 2021. Há um vácuo de liderança.
Lacalle Pou é o líder indiscutível do partido e, já que não pode ser candidato, tiveram de buscar um nome da melhor maneira possível, mas no fundo Delgado não passava de secretário do presidente e tinha uma margem política muito menor que a de um ministro de Estado, por exemplo.
A própria campanha mostrou: houve um momento muito triste na semana passada em que Álvaro Delgado fez um spot dizendo saber que as massas não gostam dele como candidato, mas que isso não significa que será um mau presidente. Isso é muito estranho.
Creio que houve um erro de leitura muito forte de muitos analistas que pensavam que a simpatia pelo presidente era um capital que poderia contagiar o seu secretário. A aprovação do presidente é de cerca de 50% e as intenções de voto no partido do presidente estão em aproximadamente 24%.
A simpatia pelo presidente também não é a simpatia pelo governo como um todo, é uma questão pessoal muito carismática. Lacalle Pou não conseguiu transferir capital político, mas também não quis fazer isso, nunca apareceu com esse candidato. Nunca quis, em termos estratégicos, ser fotografado ao lado da derrota.
Andrés Ojeda, candidato a presidente do Uruguai. Foto: Pablo Porciuncula/AFP
CC: Andrés Ojeda disse ter “pontos em comum” com Javier Milei. Em que parte do espectro político ele está?
LN: Ojeda não tem quase nada a ver com Milei, além do fato de ser algo de outsider e de usar uma estratégia midiática bem pós-moderna, por assim dizer.
Em termos ideológicos, uma vez que ele é um outsider, é difícil defini-lo como esquerda ou direita, Estado ou mercado, porque focou sua campanha em falar de bem-estar animal e saúde mental, evitando justamente entrar nas questões mais ideológicas.
Por outro lado, a campanha eleitoral deste ano no Uruguai foi muito morna, ninguém discutiu muito as questões ideológicas. Então, ele é alguém cuja posição ideológica não conhecemos, embora o Partido Colorado supostamente venha da direita. Ele é pragmático, não falou especificamente sobre coisas polêmicas em termos econômicos, de política social.
No Uruguai não funciona nenhum tipo de proposta muito liberal. A tradição estatista do país está bem enraizada desde o início do século XX, e todos os projetos que tentaram liberalizar fracassaram, como foi o governo do pai de Lacalle Pou, Lacalle Herrera (1990 a 1995).
Lacalle Pou se define como liberal, mas não fez nenhuma grande transformação na relação entre o Estado e o mercado. Não fez qualquer grande privatização.
Todos os políticos sabem que se quiserem conquistar votos não podem nem sugerir a privatização de qualquer coisa ou a desregulamentação das diferentes áreas da economia, do preço do combustível ao preço do leite.
CC: Também por isso, ao contrário de outros países da região, o Uruguai não sofreu a ascensão da extrema-direita?
LN: Correto. Não há no espectro político do Uruguai qualquer candidato que se designe ou que mobilize a extrema-direita, nem em termos de populismo, nem em termos de nacionalismo. Todos os candidatos buscam o centro político, com exceção de um candidato [Gustavo Salle] que é “antissistema”, um personagem que anda com um megafone pelas praças dizendo que todos são corruptos. É um personagem maluco, para falar claramente. Ele provavelmente terá o voto antissistema, de pessoas que não acreditam no sistema democrático, e isso representará 2% ou 3%.
Mas em termos do que pode ser observado em comparação com outros países, com incentivos a discursos violentos ou ultranacionalistas, não há qualquer candidato.
Se você vier de fora do Uruguai, não conseguirá encontrar grandes diferenças entre os candidatos, porque também não existem grandes propostas disruptivas, como existiam modelos de país em debate há 15 anos.
Agora estão todos muito medianos, “mais ou menos temos que continuar como estamos”. Não estamos debatendo dois projetos de país ou dois modelos. Há uma ideia de que o Uruguai tem de seguir o rumo, com alguns detalhes — detalhes que não vêm do lado político-partidário, mas do movimento sindical em particular, que quer fazer uma reforma do sistema de aposentadoria. Aí há um pouco mais de conflito, mas provavelmente não será aprovada.
CC: O estado de saúde de Pepe Mujica é delicado. Qual é o clima no país em relação a ele e qual foi sua participação na campanha?
LN: É um político que tem um carisma raramente visto na história política nacional, entre os que votam nele e entre os que não votam.
Como pessoa, é massivamente querido. Sua figura é muito importante para capitalizar qualquer partido político. Em segundo lugar, todos os partidos políticos o reconhecem como um líder do país. Por isso Lacalle Pou, quando foi visitar Lula, foi com Mujica.
Ele não participou da campanha, foi diagnosticado com câncer um pouco antes das eleições internas. Mas foi ao último evento de seu campo político no último sábado e lá proferiu um discurso muito emocionado, despedindo-se do povo.
As imagens mostram as pessoas presentes muito emocionadas, tristes. Já se sabe que esse câncer em algum momento o levará, e esse momento será muito doloroso para muitas pessoas no Uruguai e na região.
Hoje em dia, o seu campo político capitaliza sua figura e seu carisma, e fica uma grande pergunta: como funcionarão a Frente Ampla e seu campo depois que Mujica, o “Velho Pepe”, não estiver mais aqui?
Pepe Mujica em alto pró-Orsi em 19 de outubro de 2024. Foto: Pablo Porciuncula/AFP
CC: Como foram as relações de Lacalle Pou com Lula e o que é possível esperar de um próximo governo, seja da Frente Ampla ou do Partido Nacional?
LN: Sempre foram amistosas. Ele [Lacalle Pou] conseguiu ficar bastante fora das questões ideológicas. Foi um homem de Estado, moderando o que constitui as suas posições mais ideológicas.
No que se refere à prática presidencial, mostrou-se um chefe de Estado moderado, mas que tem suas convicções, em particular sobre um grande drama para o Uruguai há muitos anos: a abertura do Mercosul. Essa é a questão que está sempre em discussão, porque o Mercosul, no fundo, não está sendo benéfico para o Uruguai.
Não prevejo grandes mudanças nas relações bilaterais entre o Brasil e o Uruguai, não importa quem ocupará o governo. Até porque Lula não é o mesmo de 2003. Naquele momento da “onda vermelha” havia mais dinheiro, mais investimentos fluíram do Brasil para o Uruguai.
Agora, o contexto econômico faz com que nem mesmo Lula possa fazer uma agenda externa muito ativa em termos de financiamento. Mas, no fundo, as relações com o Brasil sempre foram super estáveis ao longo da história do Uruguai, muito mais estáveis do que com a Argentina, onde sempre há algum problema devido aos seus próprios altos e baixos.
***
Saiba mais sobre os candidatos
– Yamandú Orsi (Frente Ampla), 57 anos. Cresceu na pequena cidade de Canelones. Lecionou História em escolas de ensino médio do interior até 2005, quando deu seu pontapé inicial no governo de Canelones, do qual foi secretário-geral por dez anos. Também foi prefeito por dois mandatos.
Renunciou ao cargo para disputar as eleições internas da Frente Ampla e venceu com folga a ex-prefeita de Montevidéu Carolina Cosse, a preferida de socialistas e comunistas. Agora, são companheiros de chapa.
Orsi recebeu contestações ao longo da campanha por não participar de debates nem conceder entrevistas a muitos veículos de comunicação.
– Álvaro Delgado (Partido Nacional), 55 anos. Poucos dias após a assumir o cargo de secretário da Presidência de Lacalle Pou, em 2020, estourou a pandemia da Covid-19.
Também já foi inspetor-geral do Trabalho, deputado por Montevidéu e senador.
Nascido em Montevidéu, iniciou a vida na política após trabalhar como produtor rural e veterinário, área na qual se formou em 1995.
Delgado foi chamado de “homem das cavernas” e “cafona” na campanha por se referir a sua candidata a vice-presidente, Valeria Ripoll, como”bombom”. Depois, disse ter sido uma “brincadeira infeliz”.
Andrés Ojeda (Partido Colorado), 40 anos. Natural de Montevidéu, tornou-se conhecido por comentar temas jurídicos na televisão, após ser advogado de defesa, em 2015, de Héctor Amodio Pérez, ex-líder da guerrilha Tupamaros.
Surpreendeu ao vencer as primárias do Colorado, partido pelo qual foi vereador em Montevidéu entre 2010 e 2015.
Incisivo sobre saúde mental e bem-estar animal, apresenta-se como expressão difusa da “nova política”. Daí vêm algumas comparações com Javier Milei.
Ojeda cursou pós-graduação na Argentina e nos Estados Unidos.
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