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O povo detém a soberania. Falta definir quem é o povo

O direito de decidir do povo catalão estaria fundado na soberania a residir do seu povo ou do povo espanhol? Por Luiz Guilherme Arcaro Conci

O Tribunal Constitucional da Espanha declarou inconstitucional plebiscito separatista na Catalunha para o segundo semestre
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Na semana passada, meu artigo tratou da questão das manifestações plebiscitárias a ocorrer na Escócia e na Catalunha e a já ocorrida na Crimeia.

Há dois pontos que quis sublinhar, essencialmente. Primeiro, que sob a ótica do direito (constitucional e internacional), nem toda manifestação majoritária se coloca como lícita, ainda que alcançada mediante mecanismos de democracia participativa ou direta. Segundo, para o caso da Crimeia, a razão principal da ilicitude da sua anexação à Federação Russa decorre – diametralmente diferente do que ocorreu em  Kosovo – da ausência de violação em massa de direitos humanos sem a devida proteção do Estado de origem, o que permitiria abrir argumentos e razões jurídicas contra a análise meramente formal baseada na primeira premissa. Ou seja, o desrespeito ao direito interno somente poderia ser ponderado pela imprescindível proteção da pessoa humana (princípio pro homine).

Na terça-feira, tivemos mais um lance no jogo que propusemos na semana passada, agora com a Catalunha.

O Tribunal Constitucional da Espanha – órgão que detém o monopólio da interpretação definitiva da Constituição daquele Reino – entendeu que não se pode realizar a decisão plebiscitária no segundo semestre na Catalunha, pois é inconstitucional.

Sintetizemos o caso.

O Parlamento da Catalunha, em 23 de janeiro de 2013, aprovou “Declaração de Soberania e do Direito de Decidir do Povo da Catalunha”, com nove princípios, com o objetivo de legitimar democraticamente o processo de decisão popular a respeito da independência catalã.

Dentre estes princípios, dois deles são mais importantes no momento: o primeiro, que afirma o direito de soberania do povo catalão e o segundo, sobre o direito de decidir. O primeiro fundamenta o segundo, ou seja, o direito de decidir do povo catalão estaria fundado na soberania a residir no seu povo (catalão) e não no povo espanhol.

Alguns meses depois, foi criado o Conselho Assessor para a Transição Nacional, o qual auxiliaria o governo da Generalitat a impulsionar o processo de consulta popular para a independência.

Em julho de 2013 o Tribunal Constitucional decidiu suspender a Declaração catalã até análise final, ocorrida nessa semana.

Agora, o Tribunal Constitucional procedeu a uma interpretação bastante interessante.

Não nega o direito de decidir do povo catalão. Inclusive afirma está contido no ordenamento jurídico daquele país, mas fixa as suas condições, todas decorrentes da Constituição: a lealdade constitucional e o dever de auxílio recíproco entre comunidades autônomas e estado.

Todavia, quanto à soberania residir no povo catalão, o TC impõe uma derrota aos interesses da comunidade autônoma. Isso porque o artigo 1.2 da Constituição espanhola afirma que pertence a “soberania nacional ao povo espanhol”, fundamento da ordem constitucional. Sendo assim, a soberania do povo catalão somente poderia ser entendida a partir da Constituição, pois é ela que reconhece o caráter de comunidade autônoma à Catalunha.

Dependeria de uma reforma constitucional desse artigo para a realização do pleito sem depender do parlamento nacional. O povo catalão não é titular da soberania. Somente o povo espanhol, que se reuniu para elaborar a Constituição de 1978, a detém, por isso a exigência de reforma constitucional para alterar o status catalão. Os artigos 1.2 e 2 são obstáculos ao processo que se pretende para o segundo semestre. Tudo isso depende de uma manifestação do Parlamento espanhol e não, unicamente, do parlamento catalão.

Ou seja, não há soberania fragmentada, mas há um direito de decidir com previsão constitucional.

Os efeitos da realização da manifestação plebiscitária, na Catalunha, já podem ser antevistos. Caso se realize, e, eventualmente, ganhe o sim, estará ocorrendo em desrespeito ao direito espanhol que fixa, na sua Constituição, proteção contra decisões futuras. Esse direito decorre de decisões populares, especialmente, daquela exarada no processo constituinte criador da Constituição de 1978.

Muitas vezes, as constituições funcionam como amarras para o futuro. A própria constituição fixa proteções contra alterações precipitadas da ordem política e jurídica do estado nacional, ainda que fruto de decisões populares. A soberania popular não se resume a uma decisão majoritária, total ou parcial do povo. Se resume também a respeitar o decidido quando da elaboração da constituição. Nem tudo que provém de uma maioria parlamentar ou popular deve estar de acordo com o Direito, pois em uma democracia diversos são os instrumentos de controle dessas maiorias. O veto legislativo nas mãos dos chefes de estado ou governo e o poder de os juízes declararem as leis inconstitucionais são apenas dois deles.

Em último grau, em democracias constitucionalmente protegidas, foi o próprio povo, quando se reuniu em Assembleia Constituinte, que formulou essas amarras às suas decisões futuras. Há legitimação democrática nesses instrumentos contramajoritários.

Qualquer decisão outra a ser tomada pela Catalunha que não seja a paralisação do processo de consulta popular marcada para o segundo semestre, levará  a uma difícil relação com a comunidade internacional .

Aderir à União Europeia dependerá da vontade afirmativa de todos os seus membros, o que faz com que a Espanha venha ser sua inimiga.

Não há, como em Kosovo – o que inexistiu na Crimeia – violação de direitos humanos sem a proteção do estado de origem. Não se está a falar em proteção à pessoa humana como fonte de decisão de independência.

O “sim”, na verdade, não seria uma vitória.  Se o povo detém a soberania, importa definir quem é o povo. No caso, não é o povo catalão, mas o espanhol que poderia proceder à autorização, mediante seus representantes, do processo catalão.

 

Luiz Guilherme Arcaro Conci, doutor em Direito Constitucional, é professor e coordenador acadêmico do curso de Pós Graduação Lato Sensu em Direito Constitucional da Faculdade de Direito da PUC-SP e professor titular da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo. É presidente da Coordenação do Sistema Internacional de Proteção de Direitos Humanos do Conselho Federal da OAB.

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