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O outro lado

Raro repórter ocidental no front russo, Bruno Amaral de Carvalho analisa a cobertura da Guerra da Ucrânia

Cala a boca, jornalista. A comunidade ucraniana iniciou uma campanha feroz contra o livro de Carvalho – Imagem: Acervo Pessoal/Bruno Amaral de Carvalho
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Em outros tempos, A Guerra a Leste, do jornalista Bruno Amaral de Carvalho, seria avaliado apenas pelos méritos e eventuais lacunas de um livro-reportagem escrito por quem esteve em uma frente de batalha. Sem grandes paixões. Carvalho foi, no entanto, atirado em uma tormenta desde o lançamento da obra, um relato de sua experiência durante oito meses como correspondente na região do Donbass, onde são mais intensas as batalhas terrestres na Ucrânia. Por longos períodos, o freelancer português chegou a ser o único repórter ocidental a colher informações na frente russa, em contraste com as dezenas de profissionais a registrar as agruras no campo oposto. Suas histórias e análises mostram um outro lado, ignorado, do conflito e, por isso, provocaram a ira na comunidade ucraniana, que tentou censurar a publicação, tem organizado protestos nas sessões de lançamento e dirige ameaças, verbais e físicas, ao autor. Por ter ligações com o Partido Comunista Português, é frequentemente acusado de parcialidade e de estar a serviço de Vladimir Putin. Acusações que rebate de forma serena. “Peço que me julguem pelo trabalho enquanto jornalista, e não por conta da minha vida pessoal ou da minha militância política.” Na entrevista a seguir, Carvalho fala dos ataques ao livro e ao seu trabalho, do predomínio da propaganda sobre o jornalismo e do fascínio pela cobertura de guerra.

CartaCapital: A reação virulenta ao livro o surpreendeu?
Bruno Amaral de Carvalho: De alguma forma, acho natural que o livro suscite essa paixão. Os meios de comunicação estão alinhados com essa narrativa hegemônica que procura mostrar a Ucrânia como o agredido, portanto, há uma espécie de moral que tenta justificar toda espécie de estripulias admitidas por parte da Ucrânia. Isso estimula reações exacerbadas, algumas violentas, toleradas pelas autoridades e pelos órgãos de comunicação social. Em Coimbra, tentaram invadir a apresentação do meu livro, mas a única notícia divulgada foi dar conta de que os ucranianos tinham sido levados à força pela polícia e iriam fazer queixas. Deram só a versão deles. Ninguém tentou falar comigo ou com a polícia, nem com os organizadores da apresentação do livro. No fundo, prevalece uma visão unilateral da guerra. É muito perigoso, sobretudo se pensarmos que sem pluralismo não há democracia.

CC: Desde o Vietnã, os governos passaram a controlar com mais firmeza o acesso dos jornalistas aos campos de batalha e às informações. A barreira ao exercício do jornalismo aumentou ao longo do tempo. A Guerra da Ucrânia apenas repete esse padrão ou o bloqueio está pior?
BAC: A esmagadora maioria dos jornalistas cobre a guerra do lado do campo de batalha ucraniano e uma ínfima minoria de repórteres ocidentais relata os acontecimentos no front russo. Nunca a propaganda foi tão forte como nesse conflito. Hoje há mecanismos inexistentes antigamente, as redes sociais, drones, Inteligência Artificial. Esse conjunto de ferramentas torna tudo mais perigoso e faz com que a propaganda chegue ainda mais longe. Esta guerra está impregnada de propaganda, naturalmente, e por isso torna-se ainda mais vital que o jornalismo sério estivesse mais presente, mas não está. As linhas editoriais continuam canalizadas para mostrar a “verdade” que o Ocidente quer mostrar. Em resumo, que quem comete os crimes é só a Rússia, que quem começou a guerra foi a Rússia e, no fundo, a Rússia é culpada por todos os males. Se assim fosse, continuaria a haver um problema: o esforço para santificar a Ucrânia. A história não é essa. Ela não começa em 2022. Houve anteriormente uma guerra civil e temos de ir à raiz do conflito para ter condições de fornecer à opinião pública os elementos para ela construir uma ideia, com liberdade, a respeito dos acontecimentos. Não somos livres se não soubermos o que se passa em todos os lados.

“Nunca a propaganda foi tão forte” como nesta batalha

CC: Como responde às acusações da comunidade ucraniana de ter ligações com o Partido Comunista, simpático à Rússia, e, portanto, ser parcial na cobertura?
BAC: É fácil. Portugal tem grande tradição de jornalistas que participam da vida política. O presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, é um caso, foi diretor do jornal Expresso. Ninguém é mais independente, neutro, por esconder as suas convicções. Só peço que me julguem pelo trabalho enquanto jornalista, não por conta da minha vida pessoal ou da minha militância política.

CC: No Donbass, há de fato uma maioria pró-Rússia ou a população vive amedrontada, sob ameaça dos soldados?
BAC: Nos últimos dois anos, passei oito meses no Donbass e tinha estado lá em 2018, antes da chegada das tropas russas. É fácil aferir o ambiente nas ruas e a maioria esmagadora sente efetivamente pertencer à Rússia. Naturalmente, isso é a sensibilidade de um jornalista, não uma estatística. Mas, se olharmos para os resultados eleitorais até 2012, antes de 2014, ano do golpe de Estado na Ucrânia, as opções mais votadas na região eram pró-russas ou comunistas. Era importante a comunidade internacional, no âmbito de um acordo de paz, buscar compreender o desejo da população. Entendo o fato de a Ucrânia não reconhecer o resultado do referendo organizado pelos separatistas e pelos russos. Mas, se os ucranianos têm tanta certeza de que aquela população não quer ser parte da Rússia, basta propor um referendo que possa ser reconhecido por ambas as partes, com fiscalização da comunidade internacional.

CC: O que mais incomodou a comunidade ucraniana no seu livro?
BAC: É um misto, entre eles o fato de eu ter revelado que a Ucrânia também mata civis e comete crimes de guerra. De mostrar que o Batalhão Azov, o Batalhão Aidar e várias outras organizações são neonazistas. Não sou eu quem as caracteriza, elas mesmas se autodefinem. Defendem a supremacia racial e, embora se tente fazer uma operação estética, a verdade é que esses grupos sempre se assumiram como neonazistas. Quando mostro um bombardeio a um hotel frequentado por jornalistas, ou escolas destruídas, ou civis mortos por ataques, ficam evidentes os crimes de guerra. Acho corretíssimo jornalistas ocidentais estarem do lado ucraniano a mostrar os crimes de guerra da Rússia, mas não se pode ignorar a outra parte.

CC: Essa experiência reforçou a sua esperança no jornalismo? Ou ao contrário?
BAC: O jornalismo é fundamental e não pode continuar a ser o microfone dos poderosos. Por algum tempo, fui o único jornalista ocidental no front russo. Em outros momentos não estava, calhou de ser um repórter italiano também o único profissional ocidental daquele lado. Isso mostra a absoluta cegueira dos diretores, das chefias de redação, de mostrarem os dois lados. Não é só antidemocrático, como também gera opiniões e análises absolutamente bizarras. O antídoto para a propaganda só pode ser o bom jornalismo. Não há outro.

CC: O que o atrai na cobertura de guerra?
BAC: Cresci a ler Hemingway, ­Kapuscinski, tantos repórteres de guerra, e criei esse imaginário de estar nos lugares onde tudo acontece, com seus perigos. O Donbass é uma espécie de epicentro das mudanças globais. Vivemos um período histórico avassalador, os fatos mudam todos os dias e isso é muito entusiasmante, apesar de não prever tempos fáceis pela frente. É uma mudança de era e sabemos como os partos dessas eras podem ser terríveis, mas para um jornalista não há nada melhor do que estar onde as coisas acontecem, mesmo quando elas são brutais. •

Publicado na edição n° 1310 de CartaCapital, em 15 de maio de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O outro lado’

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