Mundo
O nó da austeridade
Pressões por ajustes fiscais e cortes nos gastos acuam os governos progressistas no subcontinente


Passava um pouco do meio-dia da fria segunda-feira 11 quando Gabriel Boric, presidente do Chile, acompanhado de seu ministro da Fazenda, Mario Marcel, e de outros auxiliares, iniciou um acelerado discurso no pátio do Centro Cultural Casona Dubois, palacete centenário na zona norte de Santiago. “Depois da pandemia, nosso país e o mundo ainda não conseguiram se recuperar plenamente. A isso se somam a guerra na Ucrânia e a possível recessão nos Estados Unidos e na Europa.” Boric anunciaria ali uma série de subsídios e auxílios às famílias mais atingidas pela crise econômica. “Como governo, não podemos ser indiferentes: vamos atender às urgências das pessoas, com responsabilidade fiscal.”
O aposto colocado no fim da frase tem endereço distinto da maioria da população. Visa prestar contas ao mercado e mostrar que o governo não fará nenhuma loucura perdulária. O presidente repetiu uma espécie de mantra de vários governantes à esquerda e à direita ao redor do mundo: o aumento de gastos sociais não pode colocar em risco os compromissos financeiros do Estado. Se acalma banqueiros e financistas, a tentativa de anunciar gastos e cortes concomitantes sempre acaba por frustrar um dos lados.
A chegada ao La Moneda do mais jovem presidente do continente deu-se no que pode ser um novo ciclo ascendente da centro-esquerda na América do Sul. É possível que se repita o desempenho assistido por correntes progressistas na primeira década do século, quando vitórias eleitorais em vários países geraram o fenômeno chamado de onda rosa. Na fase atual, há complicadores para partidos que buscam no ativismo estatal a alavanca para ampliar direitos e incorporar maiorias empobrecidas na dinâmica do desenvolvimento.
Na fase atual, há complicadores para partidos que buscam no ativismo estatal a alavanca para ampliar direitos
Os governos neoliberais que chegaram ao poder após 2015, via eleições ou golpes, enfraqueceram ainda mais as estruturas de Estado, privatizaram empresas estratégicas, fizeram aprovar legislações que ampliaram a informalidade nos mercados de trabalho e facultaram poderes inéditos ao capital. Além de inúmeras medidas, buscaram institucionalizar políticas de austeridade fiscal, propaladas como única forma de se realizarem bons governos. O espantoso é que setores de esquerda parece terem se convencido disso.
Voltemos a Boric. A sinalização aos mercados havia sido dada antes numa entrevista ao jornal argentino Clarín, logo após sua posse no início de março: “Na esquerda, temos de parar de pensar que responsabilidade fiscal é uma questão de direita. (…) Deve ser uma política de Estado”. Apesar da ênfase presidencial, vale sublinhar que responsabilidade fiscal é um dos conceitos básicos das políticas de austeridade, marcadas por ajustes e cortes permanentes nos orçamentos públicos, por meio da redução de investimentos, gastos e salários. A meta seria um equilíbrio para reduzir a dívida pública e priorizar o pagamento de compromissos financeiros. A responsabilidade fiscal é uma das premissas básicas do Consenso de Washington, de 1989.
O termo consta também do texto preliminar da nova Carta Magna de seu país, divulgado em 4 de julho, após quase um ano de trabalhos da Convenção Constitucional. No artigo 29, dos Princípios Constitucionais, consta o seguinte: “As finanças públicas se conduzirão conforme os princípios de sustentabilidade e responsabilidade fiscal, que guiarão a atuação do Estado em todas as suas instituições e em todos os níveis”.
Cruzemos a fronteira. A nova ministra da Economia argentina, Silvina Batakis, concedeu sua primeira entrevista coletiva, também na segunda 11, na qual garantiu a busca do equilíbrio fiscal e prometeu que o governo não gastará mais do que tiver em caixa. No mesmo dia, foi secundada pelo presidente Alberto Fernández, que afiançou: “É importante que todos os mercados entendam que a Argentina está disposta a (…) controlar os gastos públicos, continuar no caminho da redução gradual do déficit fiscal, para que isso não se torne um ajuste que prejudique as pessoas”.
Frustração. Os chilenos nas ruas em 2019 tinham grandes esperanças, mas os avanços custam a chegar – Imagem: Johan Ordonez/AFP
Na semana anterior, o economista colombiano José Maria Ocampo, futuro ministro do governo Gustavo Petro, em entrevista à Bloomberg, declarou haver “imensas demandas sociais” por parte da população. “Isso exige gastos sociais adicionais significativos e, ao mesmo tempo, é necessário dar prosseguimento ao ajuste fiscal” do governo anterior. A meta seria necessária – segundo ele – para cortar os níveis de endividamento para 55% do PIB a partir dos mais de 60% atuais.”
Tanto Batakis quanto Ocampo são economistas heterodoxos e desenvolvimentistas e têm repetido publicamente a necessidade de se elevarem gastos sociais e investimentos públicos. A conta entre necessidade de elevar e cortar gastos ao mesmo tempo costuma não fechar, a não ser em períodos de bonança nos mercados internacionais. Isso se deu entre 2001-2012, período do boom das commodities, quando aumentou significativamente o ingresso de dólares em economias periféricas, usualmente carentes de divisas.
A alegada necessidade infindável de se reduzir a proporção da dívida pública em relação ao Produto Interno Bruto não tem explicações muito definidas na racionalidade econômica. Inexiste uma porcentagem virtuosa para essa comparação nem se conhece algum tipo de correlação entre baixo endividamento e desenvolvimento. Países centrais, em geral, têm dívidas acima de 100% do PIB, como Japão (266%), Estados Unidos (137%), Espanha (120%), Canadá (118%) e França (113%), entre outros. De outra parte, Estados pobres têm débitos abaixo de 30%, a exemplo de Bangladesh (31%), Bulgária (18%), Botsuana (18%) e Burundi (16%), que não se caracterizam por terem saído de seus patamares históricos.
Mais que tudo, a aceitação da austeridade como consenso acima de orientações políticas geralmente leva governos eleitos com grande expectativa popular a frustrarem suas bases eleitorais, contribuindo para o senso comum de que “políticos são todos iguais”. Quando lideranças introjetam a concepção de que responsabilidade fiscal não tem ideologia, acabam por atender a uma visão rebaixada das disputas na sociedade.
O caso chileno é ilustrativo. Segundo a pesquisa Cadem, divulgada em 3 de julho, o governo de Boric, com pouco mais de cem dias no cargo, é aprovado por apenas 33% da população, enquanto a desaprovação alcança 62%. De acordo com a mesma sondagem, 53% pretendem rejeitar o texto da nova Carta Magna no plebiscito marcado para 4 de setembro, contra 35% que apoiam o texto divulgado há duas semanas. O anúncio de auxílios à população vulnerável representa uma tentativa de superar a decepção inicial com a gestão.
É difícil conciliar promessas de políticas sociais ao ajuste fiscal cobrado pelos mercados
O país enfrentou uma queda de 6% no PIB em 2020, graças à pandemia, e uma expansão de 11,7% no ano seguinte. A aceleração da inflação, 10,5% ao ano até junho, e o aumento da pobreza colocam, porém, o governo contra a parede, numa situação de cerrada oposição midiática e disseminação de fake news contra a Constituinte nas redes sociais.
A Argentina vive dias de crise política e econômica. A expressão pública maior é a concorrência de comando político entre o presidente Alberto Fernández e sua vice e presidente do Senado, Cristina Kirchner. Os embates feitos a quente tendem a enfraquecer a autoridade presidencial e se somam a fortes instabilidades econômicas. Há quase duas semanas, Cristina praticamente demitiu o ministro da Economia, Martin Guzmán, numa manifestação pública. Ela não aceita os termos da negociação de um empréstimo de 45 bilhões de dólares contraídos pelo antecessor Mauricio Macri ao FMI, que acarreta pesados custos financeiros. Pelos termos do acordo, os maiores pagamentos ao Fundo estão concentrados neste ano e no próximo (3,6 bilhões em 2021, ante 17,1 bilhões em 2022, 18,1 bilhões em 2023 e os restantes 4,65 bilhões em 2024). Ou seja, na segunda metade do governo Fernández, com previsível impacto negativo nos investimentos públicos e na atividade econômica.
O país depende basicamente da receita de suas exportações para fazer frente a esses dispêndios, uma vez que o acesso ao mercado internacional de capitais é extremamente limitado, devido ao histórico de moratórias de seus compromissos financeiros. A liberdade de emissão de títulos para financiar o Estado é restringida pelo fato de apenas 25% da dívida pública ser denominada em moeda nacional. Com reservas internacionais baixas e crescente dependência do ingresso de moeda forte, a alternativa da dolarização ronda permanentemente a Argentina. O peso é dinheiro miúdo para transações cotidianas. Negócios de médio e grande porte, como no ramo imobiliário, são dolarizados na prática. A expressão recorrente da situação é a volatilidade cambial.
A inflação anual de 65% e o fato de 25% da população estar imersa na pobreza (aumento de 67% em dez anos) são expressões de uma economia fragilizada, com enormes limitações para romper com as imposições de mercado. Uma pesquisa divulgada na primeira semana de julho mostra que 68,5% da população desaprova a política econômica oficial.
Entre 2012 e 2019, o país enfrentou uma gangorra de oscilações do PIB, com taxas que alternavam ano a ano picos ao redor de 2,2% e quedas de cerca de 2%, num incessante voo de galinha. A forte alta de 10,3% em 2021 apenas repôs o abismo de 9,9% do ano anterior, auge da pandemia. É um quadro distante dos anos dourados do kirchnerismo, entre 2003 e 2008, após a reestruturação forçada da dívida, com taxas de crescimento anual de quase 9%.
O discurso pró-austeridade não parece ser voluntário, mas expressa a reduzida margem de manobra do governo. Seu efeito mais visível é mitigar investimentos sociais e turbinar o descontentamento com o governo. E, além de tudo, expor perspectivas pouco alentadoras para a tentativa de Fernández se reeleger, no segundo semestre de 2023.
O caso brasileiro é distinto dos dois países. Apesar de seis anos de instabilidades, o PIB do País representa pouco mais da metade do total do continente. O fato de 95% da dívida pública ser denominada em moeda nacional faz com que não seja necessário gerar dólares a todo custo para honrar os compromissos financeiros. A flexibilidade para a expansão da base monetária, via emissão, é grande – como demonstrado no pico da pandemia –, e estamos muito menos vulneráveis a restrições ou choques externos. As reservas internacionais somam 350 bilhões de dólares, ou 19% do PIB. Na Argentina, essa porcentagem está em 6,3% e no Chile, 8%.
Por isso mesmo, a responsabilidade fiscal aqui funciona muito mais como argumento vazio, porém ruidoso, para chantagem dos mercados, visando manietar um eventual governo progressista que assuma em janeiro de 2023. O problema maior, como mencionado, não se resume a pressões do poder econômico pela austeridade, mas de o mantra ser considerado um consenso na sociedade. •
* Professor de Relações Internacionais da UFABC e coordenador do Observatório de Política Externa e Inserção Internacional do Brasil (Opeb). Agradeço pelas informações de Victor Farinelli.
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1217 DE CARTACAPITAL, EM 20 DE JULHO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O nó da austeridade”
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