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O muro que nos separa

Biden contraria promessas de campanha e mantém a política anti-imigrantes de Trump

Meia-volta. O ritmo de captura e expulsão de imigrantes ilegais continua elevado. Biden não tem força no Congresso para aprovar mudanças nas leis duras de migração - Imagem: Kris Grogan/U.S. CBP e Cameron Smith/Casa Branca
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O fluxo continua. Não importa a quantidade de policiais ou o tamanho do muro erguido, milhares de migrantes não desistem de entrar clandestinamente nos Estados Unidos. Solitários ou em família, eles se ­amontoam nos baús de caminhões muitas vezes abandonados por traficantes à beira da estrada, entregues à própria sorte. Há quem tente vencer a travessia pela correnteza traiçoeira do Rio Grande ou o calor do deserto em atalhos que não levam a lugar algum. Nas últimas quatro décadas, encontrar soluções para a realidade dolorosa da imigração ilegal tem sido um desafio para governos democratas e republicanos. Em 2016, Donald Trump alçou como pedra angular de sua campanha a construção do muro na fronteira com o México e falhou miseravelmente. No fim do mandato, a promessa havia desaparecido de vista e o ex-presidente encerrou o governo sob denúncias de tratamento imoral e desumano, especialmente de crianças separadas dos parentes, detidas em jaulas, enquanto esperavam o aval para entrar ou não no país.

Em 2020, a sensibilidade com a qual abordou o tema, prometendo não separar as famílias, construir muros ou obrigar os requerentes de asilo a esperar em campos miseráveis no México, deu a Joe Biden vantagem na disputa presidencial. Em dois anos de administração o líder democrata encontra-se, porém, no centro de uma das mais delicadas e urgentes crises de imigração. Dados divulgados pelo Departamento de Segurança Interna revelam que 2022 é considerado o ano mais violento para os imigrantes que tentaram entrar pela fronteira sul, na divisa com o México. Quase 750 imigrantes morreram neste ano, recorde que supera o total do ano passado em mais de 200 indivíduos. Não bastasse, junho ficou marcado por um incidente trágico: 50 adultos e 3 crianças foram encontrados mortos dentro e ao redor de um caminhão abandonado na cidade de San Antonio, no Texas. Outros dez adultos e uma criança foram hospitalizados, dois homens foram presos.

Segundo o diretor-executivo do Conselho Americano de Imigração, Jeremy Robbins, a tragédia em San Antonio revela as condições indescritíveis enfrentadas há anos. “Não podemos impor nossa maneira de resolver o problema daqueles que chegam às nossas fronteiras, especialmente quando falamos de crianças. Não é possível impedir que venham porque elas não vêm apenas por causa dos Estados Unidos. Elas vêm pelo que acontece em seus países de origem, por causa da instabilidade, perseguição, guerra, fome, dificuldades econômicas ou por uma impiedosa falta de oportunidade. Esses são os principais impulsionadores e o que aconteceu em San Antonio é um lembrete da necessidade de um sistema de imigração humano.”

Quase 750 estrangeiros morreram só neste ano ao tentar entrar ilegalmente no país. Número recorde

Ainda de acordo com Robbins, é necessário pôr fim a uma série de políticas que enriquecem os cartéis, aumentam as passagens de fronteira e alimentam o ­caos e as mortes. Uma das medidas adotadas mais criticadas pela opinião pública é o chamado Título 42, que passou a ser utilizado em março de 2020, no início da pandemia, e em vigor até hoje. O texto faz parte da Lei de Serviços de Saúde Pública e autoriza o Diretor dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças a suspender a entrada de indivíduos nos EUA por questões sanitárias. “Na verdade, é uma política cruel e desumana que reformulou o processamento de fronteiras e criou uma colcha de retalhos de resultados arbitrários e inconsistentes para os imigrantes”, afirma o ativista.

Em maio, Biden tentou suspender a medida, mas o pedido foi negado por um juiz federal. Ao The New York ­Times, fontes do Departamento de Segurança Interna disseram que o decreto foi utilizado para expulsar ao menos 2 milhões de imigrantes desde 2020. Mais de 13 mil eram crianças desacompanhadas. As fontes sugeriram ainda que, se o T42 fosse encerrado, o número de imigrantes que chegariam à fronteira diariamente saltaria de 8 mil para 18 mil, mas, para Robbins, os números têm sido propositalmente inflados. A consequência desse movimento pode ser vista no resultado da pesquisa do Instituto Gallup realizada um mês após a tragédia em San Antonio. Nela é possível perceber que os EUA continuam altamente divididos sobre a política de imigração: 27% dos entrevistados defendem mais liberdade para a entrada de estrangeiros, 31% preferem que seja mantida no nível atual e 38% desejam que ela diminua. Enquanto isso, dados da Alfândega e Proteção de Fronteiras mostram que, após o presidente Biden assumir o cargo, o número de requerentes de asilo e imigrantes detidos ao cruzar a fronteira entre os portos de entrada aumentou drasticamente, de 75.316 em janeiro de 2021 para um máximo de 200.658 em julho do mesmo ano. Embora a maioria que chegava à fronteira fosse do México, Guatemala, Honduras e El Salvador, parcela cada vez maior passou a vir de outros países como Venezuela,­ Nicarágua, Cuba, Haiti e Colômbia.

Para especialistas, o aumento está diretamente relacionado à utilização do Título 42, que na realidade só maquia o problema. Isso porque a esmagadora maioria dos adultos solteiros é rapidamente processada na entrada e enviada de volta ao México sem uma ordem de deportação. Esse arranjo incentiva os expulsos a fazer ao menos uma tentativa adicional de cruzar a fronteira. Essa relação entre o Título 42 e o aumento da taxa de cruzamentos repetidos foi reconhecida pelo Departamento de Segurança Interna. No total, a taxa de quem cruza a fronteira várias vezes aumentou de 7% em março de 2020 para 40% em outubro do mesmo ano.

Falsa segurança. O muro na fronteira com o México e o policiamento na fronteira não inibe os imigrantes. Governadores republicanos têm enviado os detidos para estados “democratas” – Imagem: Mani Albrecht/U.S. CBP e iStockphoto

Os republicanos têm outra tese. Segundo eles, as “políticas de fronteira aberta” de Biden são as grandes responsáveis pelo aumento do número de imigrantes na borda. Por isso, desde abril, governadores e prefeitos do partido de Trump passaram a enviar milhares de ilegais em ônibus fretados para Chicago, Nova York e a capital Washington DC, todas administrações democratas. Dois deles, inclusive, foram estacionados ao lado da residência da vice-presidente, Kamala ­Harris. “Espero que ele cumpra sua promessa de receber todos os imigrantes de braços abertos para que nossas cidades de fronteira invadidas e sobrecarregadas possam encontrar alívio”, disse o governador do ­Texas, Greg Abbott, líder do movimento, em um comunicado oficial em referência ao prefeito de Nova York, Eric Adams.

Logo que os primeiros ônibus começaram a chegar na cidade, Adams passou a acusar os republicanos de usarem “pessoas inocentes como peões políticos para fabricar uma crise”. “Esta é uma crise humanitária que começou com violência e instabilidade na América do Sul e está sendo acelerada pela dinâmica política americana. Milhares de requerentes de asilo foram levados de ônibus para a cidade de Nova York e simplesmente deixados, sem aviso prévio, coordenação ou atendimento – e mais estão chegando todos os dias”, denunciou.

Na primeira semana de outubro, o prefeito nova-iorquino declarou estado de emergência, saída para lidar com o fluxo de requerentes de asilo que chegam à cidade vindos do Texas e de outros estados. Adams também pediu apoio federal e estadual de emergência, pois a cidade projeta custos extras de mais de 1 bilhão de dólares. “Esta crise não é nossa, mas afetará a todos nesta cidade, agora e nos próximos meses. Os nova-iorquinos merecem saber por que isso está acontecendo e o que planejamos fazer.”

Republicanos têm enviado imigrantes ilegais para cidades ou estados governados por democratas

Segundo relatório divulgado pela administração democrata, no fim de setembro, Nova York tinha mais de 61 mil cidadãos, quase 20 mil crianças, em seu sistema de abrigos, incluídos os moradores da cidade e milhares de requerentes de asilo que foram levados de ônibus de todo o país. Em três meses, mais de 17 mil fizeram o requerimento de asilo. Em ­Washington DC, mais de 230 ônibus levaram quase 9,4 mil imigrantes, incluídas famílias com crianças pequenas.

Segundo Melissa López, advogada de imigração e diretora da Diocesan Migrant & Refugee Services, maior provedor de serviços jurídicos de imigração gratuitos do Texas e Novo México, pela primeira vez os norte-americanos enxergam a realidade do sistema de imigração. “É importante discutir, pois somos e sempre fomos um país de imigrantes. Há uma razão pela qual a Estátua da Liberdade há muito representa os Estados Unidos, por ter sido a porta para um novo começo para os imigrantes. Infelizmente, os tempos são outros e as leis são mais complicadas do que nunca.”

À medida que uma nova rodada de eleições se aproxima (em novembro acontece a disputa pelo governo de 50 estados, das 435 cadeiras na Câmara dos Deputados e 35 dos cem assentos no Senado), o tema, espinhoso, vai estar presente nas entranhas das campanhas dos dois partidos. Enquanto ainda não possui votos suficientes para fazer a reforma do sistema de imigração, Biden implementa, aos poucos, um plano que promete reduzir para seis semanas, em vez dos anos atuais, a emissão do asilo. O projeto engatinha, mas representa um avanço diante de anos de políticas xenófobas. Embora a polarização entre democratas e republicanos esteja longe de uma trégua, há o consenso de ambas as partes de que a forma como o país trata os imigrantes diz muito sobre seu povo. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1231 DE CARTACAPITAL, EM 26 DE OUTUBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O muro que nos separa”

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