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O homem que poderá determinar se haverá guerra em Mali

Iyad Ag Ghaly unificou grupos islâmicos e tomou o norte de do país. Ele pode ser convencido a abandonar sua conquista?

Imagem de 21 de setembro mostra islamistas armados em Gao, a maior cidade do norte do Mali. Foto: Issouf Sanogo / AFP
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 Por Peter Beaumont

O vídeo é um caso peculiar: uma figura portentosa, com barba espessa, inspeciona seus combatentes islâmicos no deserto no norte de Mali. Feito no início do ano e publicado no YouTube, a maior parte dos cerca de 12 minutos é ocupada por orações, entremeada com tiros dos combatentes atacando a pequena guarnição de Aguelhok e imagens de soldados mortos.

O homem mostrado é Iyad Ag Ghaly — apelidado de “o estrategista” –, o líder islâmico tuaregue do grupo Ansar Dine, os “defensores da fé”. Os atos desse homem nas próximas semanas poderão determinar se haverá uma intervenção estrangeira no Mali contra ele e seus aliados — Al Qaeda no Magreb Islâmico e Mujao (Movimento por Abertura e Jihad na África Ocidental.

No início deste ano, a aliança desses três grupos capturou grande parte do norte de Mali, incluindo as cidades de Kidal, Timbuktu e Gao. Desde então eles impuseram uma interpretação impopular e radical da xariá que inclui apedrejamentos, amputações e a destruição de locais sagrados.

Com a crescente ameaça da intervenção liderada pela União Africana para recuperar o norte, apoiada pela União Europeia e os Estados Unidos, a figura quixotesca de Ag Ghaly emergiu como o foco de tentativas de convencê-lo a trocar de lado, para evitar um conflito maior.

Na semana passada, enquanto uma delegação do adversário Movimento Nacional Tuaregue pela Libertação de Azawad (MNLA) esteve em Paris para divulgar seu caso, soube-se que as discussões enfocam cada vez mais Ag Ghaly. Talvez não seja surpreendente, dado o seu histórico. Pois enquanto Ag Ghaly trabalhou duro para se reinventar como um líder islâmico linha-dura, nem sempre foi o caso para um homem há muito conhecido como um admirador de uísque e música. Como sugeriu um telegrama que vazou da embaixada americana, Ag Ghaly tem uma reputação de defender seus interesses, e há muito tempo desejava “jogar dos dois lados… para maximizar seu ganho pessoal”.

A complexa política tribal do norte de Mali e da região do Sahel há muito tempo coloca tribos rivais e grupos sociais concorrentes uns contra os outros. Como observou o autor do telegrama vazado da embaixada em 2008, o que isso significava na década de 1990 era uma “sopa de letrinhas” de grupos nacionalistas com diferentes ligações tribais, em uma área do tamanho da França, incluindo mais recentemente afiliados da Al Qaeda, com interesses financeiros por sequestros e contrabando.

Tudo isso mudou com a influência desestabilizadora da guerra na Líbia, que levou a uma enxurrada de armas para o Mali, um golpe militar na capital, Bamako, e a rebelião no norte, primeiro liderada pelo MNLA, um novo grupo em que Ag Ghaly buscou um papel de liderança mas foi rejeitado. A resposta do “aristocrata” tribal de fala mansa, segundo analistas, foi montar o Ansar Dine como grupo rival, formando uma aliança de conveniência com a Al Qaeda no Magreb Islâmico e o Mujao. Foi uma divisão que atingiu o auge em março, quando rebeldes rivais de Ag Ghaly o acusaram de minar a causa com suas declarações islâmicas, chamando-o de “criminoso” que queria fundar um “Estado teocrático”.

Em evidências apresentadas à Comissão de Assuntos Exteriores da Câmara dos Deputados dos EUA no início deste ano, Rudolph Atallah, do Conselho Atlântico, que passou muito tempo no norte de Mali, disse que a separação de Ag Ghaly de outros líderes tuaregues para fundar o Ansar Dine significa que o Mali está “se tornando um ímã para combatentes estrangeiros, que estão acorrendo para treinar recrutas no uso de armas sofisticadas, fabricadas para e tomadas do arsenal de [Muammar] Khaddafi”.

Ag Ghaly nasceu em uma família nobre do grupo tribal Ifogha, que veio da região de Kidal, no norte. Ele viajou para a Líbia quando jovem e se uniu à Legião Islâmica de Khaddafi, composta de exilados do Sahel, que Khaddafi usou como bucha de canhão em seu conflito com o Chade. Ele retornou ao Mali em 1990 para se unir à rebelião tuaregue como líder, mais tarde atuando como negociador entre o governo maliense e os rebeldes.

Seu interesse pelo ramo fundamentalista salafita do islamismo surgiu, segundo um perfil na revista francesa L’Express, no final dos anos 1990, quando ele encontrou praticantes paquistaneses em Kidal, ao mesmo tempo em que surgia como um intermediário para sequestradores islâmicos, um negócio rentável em que ele recebia uma parte dos resgates. Os contatos de Ag Ghaly com os islâmicos que mais tarde formariam o núcleo da Al Qaeda no Magreb Islâmico foram reforçados pelo fato de que um “primo” liderava um desses grupos.

Ag Ghaly também conseguiu manter um relacionamento funcional com o ex-presidente de Mali Amadou Toumani Touré, convencendo-o a nomeá-lo seu enviado para Jedá, na Arábia Saudita, uma proximidade que explicava sua rejeição como líder pelos rebeldes do MNLA.

Hoje, porém, Ag Ghaly enfrenta seu maior desafio. O sucesso relâmpago dos ganhos islâmicos no norte de Mali tiveram má repercussão entre muitos na região. Em um grande giro pelo norte para angariar apoio, ele foi recusado por líderes tribais.

Outros relatos — impossíveis de verificar — sugerem que mesmo em seu próprio feudo de Kidal sua imposição da lei xariá se mostrou profundamente impopular e hoje ele está ficando sem dinheiro, enquanto seu grupo sofre deserções.

Uma resolução do Conselho de Segurança da ONU autorizou a formação de uma expedição militar liderada pela União Africana para recapturar o norte, enquanto a França, Alemanha e EUA ofereceram assistência logística. A Argélia, que havia resistido a qualquer intervenção, disse que a aceitaria como “último recurso”, desde que não ponha os pés em solo argelino para caçar combatentes.

Patrick Smith, do boletim “Africa Confidential”, que esteve em Paris depois da delegação do MNLA, acredita que Ag Ghaly terá uma opção. “Existe um crescente desejo de comunicar-se com ele para dizer: você pode se aliar a nós e ajudar a tentar um acordo para um norte descentralizado. Senão, é a guerra e você acabará em uma lista com outros líderes associados à Al Qaeda, perguntando-se quando virá o seu teleguiado.”

Smith, como outros analistas, acredita que Ag Ghaly está mais interessado no poder do que em fundar um “Estado teocrático” em Mali. “Quando ele estava manobrando por uma posição de liderança no MNLA, não havia questão de um Estado teocrático.”

Outro analista ocidental disse: “Ag Ghaly é considerado um homem adulto, um pragmático que está disposto a fazer acordos”.

John Campbell, um observador do Mali no Conselho de Relações Exteriores dos EUA, duvida que haja um conflito, apesar do aquecimento de tambores que sugere uma iminente intervenção militar. Ele acredita que é mais provável uma negociação, pelo menos envolvendo Ag Ghaly e seus seguidores. “Eu acho que o modo de avançar é o diálogo político.”

A maioria, porém, admite que mesmo que Ag Ghaly seja convencido a conversar e se separe da Al Qaeda no Magreb Islâmico em troca de mais autonomia para o norte, isso ainda deixaria a questão da Al Qaeda e seus combatentes estrangeiros, que incluem argelinos e sudaneses. A decisão argelina de aceitar que uma intervenção militar talvez seja inevitável, depois de semanas de pressão diplomática da França, poderá servir para convencer o líder tuaregue a mudar de ideia.

guardian.co.uk

 Por Peter Beaumont

O vídeo é um caso peculiar: uma figura portentosa, com barba espessa, inspeciona seus combatentes islâmicos no deserto no norte de Mali. Feito no início do ano e publicado no YouTube, a maior parte dos cerca de 12 minutos é ocupada por orações, entremeada com tiros dos combatentes atacando a pequena guarnição de Aguelhok e imagens de soldados mortos.

O homem mostrado é Iyad Ag Ghaly — apelidado de “o estrategista” –, o líder islâmico tuaregue do grupo Ansar Dine, os “defensores da fé”. Os atos desse homem nas próximas semanas poderão determinar se haverá uma intervenção estrangeira no Mali contra ele e seus aliados — Al Qaeda no Magreb Islâmico e Mujao (Movimento por Abertura e Jihad na África Ocidental.

No início deste ano, a aliança desses três grupos capturou grande parte do norte de Mali, incluindo as cidades de Kidal, Timbuktu e Gao. Desde então eles impuseram uma interpretação impopular e radical da xariá que inclui apedrejamentos, amputações e a destruição de locais sagrados.

Com a crescente ameaça da intervenção liderada pela União Africana para recuperar o norte, apoiada pela União Europeia e os Estados Unidos, a figura quixotesca de Ag Ghaly emergiu como o foco de tentativas de convencê-lo a trocar de lado, para evitar um conflito maior.

Na semana passada, enquanto uma delegação do adversário Movimento Nacional Tuaregue pela Libertação de Azawad (MNLA) esteve em Paris para divulgar seu caso, soube-se que as discussões enfocam cada vez mais Ag Ghaly. Talvez não seja surpreendente, dado o seu histórico. Pois enquanto Ag Ghaly trabalhou duro para se reinventar como um líder islâmico linha-dura, nem sempre foi o caso para um homem há muito conhecido como um admirador de uísque e música. Como sugeriu um telegrama que vazou da embaixada americana, Ag Ghaly tem uma reputação de defender seus interesses, e há muito tempo desejava “jogar dos dois lados… para maximizar seu ganho pessoal”.

A complexa política tribal do norte de Mali e da região do Sahel há muito tempo coloca tribos rivais e grupos sociais concorrentes uns contra os outros. Como observou o autor do telegrama vazado da embaixada em 2008, o que isso significava na década de 1990 era uma “sopa de letrinhas” de grupos nacionalistas com diferentes ligações tribais, em uma área do tamanho da França, incluindo mais recentemente afiliados da Al Qaeda, com interesses financeiros por sequestros e contrabando.

Tudo isso mudou com a influência desestabilizadora da guerra na Líbia, que levou a uma enxurrada de armas para o Mali, um golpe militar na capital, Bamako, e a rebelião no norte, primeiro liderada pelo MNLA, um novo grupo em que Ag Ghaly buscou um papel de liderança mas foi rejeitado. A resposta do “aristocrata” tribal de fala mansa, segundo analistas, foi montar o Ansar Dine como grupo rival, formando uma aliança de conveniência com a Al Qaeda no Magreb Islâmico e o Mujao. Foi uma divisão que atingiu o auge em março, quando rebeldes rivais de Ag Ghaly o acusaram de minar a causa com suas declarações islâmicas, chamando-o de “criminoso” que queria fundar um “Estado teocrático”.

Em evidências apresentadas à Comissão de Assuntos Exteriores da Câmara dos Deputados dos EUA no início deste ano, Rudolph Atallah, do Conselho Atlântico, que passou muito tempo no norte de Mali, disse que a separação de Ag Ghaly de outros líderes tuaregues para fundar o Ansar Dine significa que o Mali está “se tornando um ímã para combatentes estrangeiros, que estão acorrendo para treinar recrutas no uso de armas sofisticadas, fabricadas para e tomadas do arsenal de [Muammar] Khaddafi”.

Ag Ghaly nasceu em uma família nobre do grupo tribal Ifogha, que veio da região de Kidal, no norte. Ele viajou para a Líbia quando jovem e se uniu à Legião Islâmica de Khaddafi, composta de exilados do Sahel, que Khaddafi usou como bucha de canhão em seu conflito com o Chade. Ele retornou ao Mali em 1990 para se unir à rebelião tuaregue como líder, mais tarde atuando como negociador entre o governo maliense e os rebeldes.

Seu interesse pelo ramo fundamentalista salafita do islamismo surgiu, segundo um perfil na revista francesa L’Express, no final dos anos 1990, quando ele encontrou praticantes paquistaneses em Kidal, ao mesmo tempo em que surgia como um intermediário para sequestradores islâmicos, um negócio rentável em que ele recebia uma parte dos resgates. Os contatos de Ag Ghaly com os islâmicos que mais tarde formariam o núcleo da Al Qaeda no Magreb Islâmico foram reforçados pelo fato de que um “primo” liderava um desses grupos.

Ag Ghaly também conseguiu manter um relacionamento funcional com o ex-presidente de Mali Amadou Toumani Touré, convencendo-o a nomeá-lo seu enviado para Jedá, na Arábia Saudita, uma proximidade que explicava sua rejeição como líder pelos rebeldes do MNLA.

Hoje, porém, Ag Ghaly enfrenta seu maior desafio. O sucesso relâmpago dos ganhos islâmicos no norte de Mali tiveram má repercussão entre muitos na região. Em um grande giro pelo norte para angariar apoio, ele foi recusado por líderes tribais.

Outros relatos — impossíveis de verificar — sugerem que mesmo em seu próprio feudo de Kidal sua imposição da lei xariá se mostrou profundamente impopular e hoje ele está ficando sem dinheiro, enquanto seu grupo sofre deserções.

Uma resolução do Conselho de Segurança da ONU autorizou a formação de uma expedição militar liderada pela União Africana para recapturar o norte, enquanto a França, Alemanha e EUA ofereceram assistência logística. A Argélia, que havia resistido a qualquer intervenção, disse que a aceitaria como “último recurso”, desde que não ponha os pés em solo argelino para caçar combatentes.

Patrick Smith, do boletim “Africa Confidential”, que esteve em Paris depois da delegação do MNLA, acredita que Ag Ghaly terá uma opção. “Existe um crescente desejo de comunicar-se com ele para dizer: você pode se aliar a nós e ajudar a tentar um acordo para um norte descentralizado. Senão, é a guerra e você acabará em uma lista com outros líderes associados à Al Qaeda, perguntando-se quando virá o seu teleguiado.”

Smith, como outros analistas, acredita que Ag Ghaly está mais interessado no poder do que em fundar um “Estado teocrático” em Mali. “Quando ele estava manobrando por uma posição de liderança no MNLA, não havia questão de um Estado teocrático.”

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John Campbell, um observador do Mali no Conselho de Relações Exteriores dos EUA, duvida que haja um conflito, apesar do aquecimento de tambores que sugere uma iminente intervenção militar. Ele acredita que é mais provável uma negociação, pelo menos envolvendo Ag Ghaly e seus seguidores. “Eu acho que o modo de avançar é o diálogo político.”

A maioria, porém, admite que mesmo que Ag Ghaly seja convencido a conversar e se separe da Al Qaeda no Magreb Islâmico em troca de mais autonomia para o norte, isso ainda deixaria a questão da Al Qaeda e seus combatentes estrangeiros, que incluem argelinos e sudaneses. A decisão argelina de aceitar que uma intervenção militar talvez seja inevitável, depois de semanas de pressão diplomática da França, poderá servir para convencer o líder tuaregue a mudar de ideia.

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