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O general inverno

A iminente queda nas temperaturas torna ainda mais dramático o insolúvel conflito

Recrudescimento. A Rússia retalia a Ucrânia por causa da destruição da ponte de Kerch. Von der Leyen manda mais dinheiro a Zelensky - Imagem: USES/AFP e Gabinete da Presidência da Ucrânia
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O frio bate à porta e os ventos gelados que começam lentamente a soprar na Europa espalham a mensagem: dias piores virão na guerra da Ucrânia. Após o ataque em 11 de outubro à ponte no Estreito de Kerch, estratégica ligação entre a Rússia e a Crimeia, Vladimir Putin ordenou uma retaliação sem limites. Mísseis e drones camicases, estes fornecidos pelo Irã, segundo serviços secretos ocidentais, embora atinjam alvos variados e aleatórios, causaram nas últimas semanas danos profundos ao sistema elétrico da Ucrânia. Calcula-se que 30% das centrais de energia do país tenham sido destruídas em oito dias de bombardeios e provocado apagões em mais de mil cidades e vilarejos. Em grande parte da capital Kiev, assim como em outras localidades, faltam luz e água. O risco de acidente nuclear em Zaporizhia, usina controlada pelo exército russo, continua alto. Autoridades ucranianas aconselham a população a se preparar como possível for para um inverno “rigoroso e sem precedentes”. ­Herman Halushchenko, ministro da Energia, implorou por apoio internacional para “fechar os céus”, interceptar disparos inimigos e preservar a infraestrutura restante. “Ataques a usinas nucleares são uma questão de segurança e proteção para todo o mundo”, afirmou em entrevista à BBC.

Os bombardeios maciços não são a única resposta do Kremlin. Horas depois de um carro-bomba destruir a ponte de ­Kerch, Putin nomeou um novo comandante militar. Sergei Surovikin, de 55 anos, veterano de guerras, carrega o sugestivo apelido de “General Armagedon”. Não à toa. Fora denúncias de agressões, assassinatos e tráfico de armas, constam em seu currículo as batalhas no ­Tadjiquistão e na Chechênia, nos anos 1990, e a intervenção na ­Síria em 2015, onde teria supervisionado os ataques aéreos que destruíram a cidade de Aleppo e liberado o uso de gás sarin contra opositores do ditador Bashar al-Assad, aliado de Moscou. Uma das principais missões do linha-dura Surovikin é recuperar o terreno perdido para as tropas ucranianas nas bordas da região de Donbass, anexada pela Rússia na sequência de um plebiscito considerado fraudulento pelo Ocidente. Na quarta-feira 19, o general admitiu, porém, as dificuldades em Kherson, onde as tropas foram obrigadas a recuar cerca de 30 quilômetros e ceder terreno às forças ­adversárias. “A situação na área da operação militar especial (eufemismo do Kremlin para a invasão) pode ser descrita como tensa”, declarou o comandante, com franqueza inusual em tempos de guerra, ao canal de tevê Rossiya 24. “O inimigo não abandona suas tentativas de atacar. O exército garantirá acima de tudo a evacuação segura da população.” Segundo Vladimir Saldo, preposto russo em ­Kherson, cerca de 60 mil civis serão retirados nos próximos dias da cidade e de localidades vizinhas e enviados à margem leste do Rio Dnieper, enquanto os militares se preparam para combates intensos. Na quarta-feira 19, Putin decretou lei marcial nas áreas anexadas e determinou alerta máximo nos territórios russos.

O recente avanço terrestre dos ucranianos levou a União Europeia e os Estados Unidos a jogarem mais lenha na fogueira. Na segunda-feira 17, o Conselho Europeu liberou outros 500 milhões de euros (cerca de 2,5 bilhões de reais) a Kiev por meio do mecanismo ironicamente chamado de “Apoio à Paz”. O novo aporte, o sexto, eleva a contribuição do continente a 3 bilhões de euros. “A UE intensifica seu apoio à Ucrânia para que esta defenda a soberania e a integridade territorial nas fronteiras que lhe são internacionalmente reconhecidas e defenda a população da guerra de agressão em curso”, diz o comunicado do Conselho. Desde o anúncio da anexação do Donbass pela Rússia, europeus e norte-americanos ameaçam impor novas sanções. Apesar dos resultados nulos sobre o estado de ânimo de Putin, que parece firme no propósito de manter o conflito por tempo indefinido, e dos efeitos colaterais das medidas, em parte responsáveis pela disparada dos preços dos combustíveis e dos alimentos e pela ampliação da ameaça de recessão global, o Ocidente continua a vender a ideia de sucesso da contraofensiva econômica. “Vemos que o setor financeiro da Rússia está em estado crítico. A indústria está nas últimas. É muito interessante analisar o setor militar, agora com muita dificuldade em repor peças. Há falta de tecnologia atualizada”, discursou Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia. “Basicamente, o Kremlin colocou a economia russa no caminho do desaparecimento.”

Putin mira o sistema elétrico ucraniano e muda o comando militar

A ver. A reorganização das relações internacionais acelerada pela guerra na Ucrânia fez reaparecer, se não uma cortina de ferro, um véu entre Ocidente e Oriente. A Rússia busca a Leste novos consumidores para suas imensas reservas de petróleo e gás e a Europa ainda tateia uma solução segura para se tornar menos dependente de Moscou. Embora os protestos internos tenham aumentado de forma substancial, principalmente depois do desastroso anúncio de convocação de 300 mil reservistas, e sido subjugados violentamente pela polícia, o que não conta pontos para a popularidade de Putin, as sanções dos EUA e da Europa alimentaram o nacionalismo e deram respaldo à aventura pessoal do presidente. Em uma tradução da postura belicista, isolacionista e anti-Ocidente que neste momento vigora na Rússia, ou ao menos na cúpula do poder, o ministro das Relações Exteriores, ­Sergey Lavrov, declarou que o país dispensa a presença diplomática nos Estados a Oeste do globo. “Não há sentido nem desejo de manter a presença anterior. Nosso pessoal trabalha lá em condições que dificilmente podem ser chamadas de humanas. Eles enfrentam ameaças de agressões físicas. Mais importante: não há trabalho a fazer desde que a Europa decidiu se desligar de nós… Você não pode forçar o amor.”

Enquanto isso, a máquina de moer carne, mentes e futuros gira a pleno vapor. A batalha “rápida”, segundo as previsões de fevereiro, logo completará 250 dias. Ninguém no planeta, a esta altura, é capaz de traduzir os planos de Putin ou de Volodymyr Zelensky, o “herói” hoje obrigado a implorar por migalhas dos aliados. Os crimes contra a humanidade continuam a ser relatados, mas deixaram de comover. Em oito meses, o conflito produziu quase 30 mil mortos e 53 mil feridos, destruiu 140 mil prédios e instalações ucranianas e gerou um prejuízo estimado em 350 bilhões de dólares. Muito? Não para os senhores da guerra. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1231 DE CARTACAPITAL, EM 26 DE OUTUBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O general inverno “

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