Mundo

cadastre-se e leia

Névoa incômoda

Amsterdã pretende banir os ‘turistas da maconha’ de suas cafeterias

Negócio lucrativo. Segundo pesquisa, cem das 166 cafeterias locais atendem apenas às necessidades de turistas - Imagem: iStockphoto
Apoie Siga-nos no

Dedilhando suavemente um violão do lado de fora do café “mais legal” de Amsterdã, os turistas franceses Terry Novel e Manon Fouquet desfrutam um “baseado” ao sol. Eles não têm ideia da nuvem escura que paira sobre eles e o setor de maconha na cidade. O conselho municipal acabou de passar um dia debatendo se deve proibir turistas de frequentar cafés como o Coffeeshop The Rookies, onde o Estado atualmente faz vista grossa para o consumo de ­Cannabis por estrangeiros e tributa os lucros.

“Nós realmente amamos a cidade”, diz Fouquet, de 26 anos. “Viemos pelos museus, pelas pessoas e pelo ambiente, não apenas para fumar. Mas é bom que seja legal e benfeito, tem maconha de boa qualidade e muito respeito das pessoas.” Mas não de todos. A prefeita de Amsterdã, Femke Halsema, que tem a última palavra sobre lei e ordem, quer a proibição temporária de não residentes nas coffee shops, aplicando uma regra nacional apenas para residentes conhecida como i-criterium.

Mesmo que não haja maioria para a proibição quando os vereadores a votarem, Halsema não desiste. Na opinião dela, e na dos chefes de polícia e promotores, banir os turistas dos cafés é inevitável para reduzir o setor de drogas leves, combater o incômodo turístico e atacar a criminalidade das drogas pesadas. Um estudo recente sugeriu que cem das 166 cafeterias da capital atendem apenas às necessidades dos turistas. Agora que as medidas de prevenção contra o Coronavírus foram suspensas, o bairro da “luz vermelha” está mais turbulento do que nunca, e há uma pressão crescente para dizer às ­pessoas que desejam um “feriado moral” para irem a outro lugar. No final de uma longa reunião do conselho na semana passada, Halsema não foi dissuadida. “Meus bons amigos”, disse ela, “vamos deixar o ­i-criterium fervilhar em suas cabeças.”

Em abril, numa proposta de 13 páginas, a prefeita pediu o apoio do conselho para fazer cumprir temporariamente a lei só para moradores, em grande parte devido a preocupações com a “porta dos fundos criminosa” dos cafés. Fumar e possuir maconha para consumo pessoal são “tolerados”, mas o cultivo comercial não, então as cafeterias devem comprar de criminosos. Um influente relatório de 2019 sobre o “lado sombrio” da capital holandesa sugeriu rever a regra apenas para residentes, para ajudar a enfrentar essa “selva urbana”.

Alguns partidos concordam, como o Partido Popular pela Liberdade e Democracia (VVD), de centro-direita, que propôs a proibição há dois anos. “É um dos poucos ‘botões’ que podemos girar em nível local para conter o grande incômodo no centro da cidade e ajustar a nossa imagem sobre bebidas e drogas”, disse Claire Martens, a líder local do partido, ao Observer. ­“Amsterdã é bonita demais para isso e os moradores merecem mais. As despedidas de solteiro e os turistas europeus que vêm aqui para fumar maconha, dormir no carro e fazer barulho não agregam valor algum à cidade.”

Cansada de visitantes chapados, a prefeita quer limpar a cidade, mas a proibição pode produzir efeito oposto ao desejado

Els Iping, ex-político trabalhista envolvido no grupo de moradores Stop de Gekte (“Pare a Loucura”), e o ­Wallenwacht – a lembrar aos turistas malcomportados que famílias moram lá – afirmam que os moradores acreditam que os controles mais rígidos sobre bordéis, horários de servir álcool e as coffee shops são essenciais. “Os traficantes vêm pelos turistas, os turistas vêm pelos cafés”, diz. “Estamos dizendo: quebrem o círculo!”

Outros discordam ferozmente. ­Mark Jacobsen, coproprietário do The Rookies, acredita que as drogas pesadas não têm nada a ver com seu setor. “Tenho meu café há 30 anos e, no momento em que os clientes fazem qualquer coisa com cocaína, eu os jogo para fora, figurativa e literalmente”, disse ao conselho. Em entrevista ao ­Observer, ele aponta o resultado de pesquisa a revelar que quase a metade dos turistas vem pela maconha, e 24% ainda viriam, mesmo que fosse proibida. “O governo permite que sejamos empreendedores dessa forma e nunca terminou a gedoogbeleid (política de tolerância às drogas)”, diz. “Se alguém cultiva Cannabis é crime, mas vejo meu negócio separado das drogas pesadas e outros delitos.”

Outros se preocupam com o aumento dos traficantes de rua, especialmente porque Amsterdã e outras cidades tentam proteger os jovens vulneráveis. “Nossa principal objeção é que os jovens serão tentados a entrar sob a proteção dos grandes traficantes. O ­i-criterium tornará possível atrair jovens para o tráfico de rua. Está acontecendo agora. A questão é: você, como governo, quer que isso piore?”, observa Sheher Khan, líder do partido local Denk.

O doutor Ton Nabben, criminologista e pesquisador de drogas, estudou os efeitos de um “passe da maconha” obrigatório para moradores que não teve sucesso há uma década em cidades de fronteira como Maastricht. Ele sustenta que haveria um efeito de o suprimento mudar de lugar. “Chegaremos a uma situação em que você chega a Schiphol (o aeroporto) e os revendedores perguntam se você gostaria de comprar algo, porque não pode entrar num café”, explicou ao Observer.

“Alguns turistas foram enquadrados como de baixo valor, mas há todos os tipos de grupos que vão a cafés, jovens e idosos, pessoas com emprego que vêm para uma conferência e, claro, os jovens italianos e britânicos ‘chapados’. Mas não é a maioria, e você os vê em cafés no mundo todo.” Voltando ao The Rookies, onde a “Amnesia Haze” é vendida por 10,90 euros o grama e uma placa convida os visitantes a sorrir, Novel, de 21 anos, se pergunta por que a maconha é estigmatizada. “É uma ajuda diária”, resume. “Como uma taça de vinho na França.” •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1229 DE CARTACAPITAL, EM 12 DE OUTUBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Névoa incômoda “

Leia essa matéria gratuitamente

Tenha acesso a conteúdos exclusivos, faça parte da newsletter gratuita de CartaCapital, salve suas matérias e artigos favoritos para ler quando quiser e leia esta matéria na integra. Cadastre-se!

ENTENDA MAIS SOBRE: , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo