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Nem liberal, nem libertário: como classificar Javier Milei no aspecto ideológico

CartaCapital conversou com pesquisadores e especialistas em sistemas democráticos, populismo e movimentos de direita na América Latina

O presidente eleito da Argentina, Javier Milei. Foto: Luis Robayo/AFP
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Na eleição deste ano, a Argentina reiterou o desejo de levar à presidência do país uma figura que, até pouco tempo atrás, era praticamente um desconhecido da maioria da população.

Javier Milei, que se autoproclama um “liberal libertário”, chega à Casa Rosada neste domingo 10 sob um manto de incertezas. Do ponto de vista econômico, as opiniões divergem radicalmente quanto ao potencial das políticas do novo presidente para resgatar a Argentina de sua crise financeira.

Já sob o ângulo político-partidário, ainda é uma incógnita como (e se) Milei conseguirá apoio do Congresso para aprovar as suas pautas. Sua coalizão não terá maioria no Legislativo. Talvez por isso, desde que foi eleito, Milei escanteou alguns dos principais nomes da direita linha-dura e acolheu quadros da direita macrista.

Paira ainda uma terceira incerteza sobre o futuro presidente argentino: como classificá-lo dentro do espectro ideológico?

Desde antes do início da campanha, Milei já manifestou a sua admiração por figuras políticas da direita radicalizada do continente americano. Os elogios ao ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, são públicos. O mesmo vale para o ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro (PL), que ligou para Milei após a eleição e vai comparecer à posse do novo presidente da Argentina.

A identidade política de Milei, moldada tanto por suas próprias definições quanto por seus apoiadores, inspira uma miríade de rótulos. “Extrema-direita”, “direita radicalizada”, “anarco-capitalista”, “ultralibertário” e “liberal libertário” são alguns dos termos usados por analistas e pela mídia, tanto no Brasil quanto na Argentina, para capturar a essência do controverso presidente argentino.

A frágil situação econômica da Argentina deve limitar a capacidade do país de suportar decisões econômicas amalucadas

As dúvidas ganham força, também, porque a vitória de Milei mudou significativamente o quadro político da Argentina. Ao vencer o peronista Sergio Massa no segundo turno, Milei contribuiu, também, para uma cizânia na centro-direita do país. Guardadas as particularidades do processo argentino, o movimento se assemelha ao que aconteceu no Brasil com o PSDB e outros partidos de direita, desbancados pela direita radical nas urnas e na polarização política.

Para tentar definir Milei, CartaCapital conversou com pesquisadores e especialistas em sistemas democráticos, populismo e movimentos de direita na América Latina.

Os vários rótulos de Milei

Ao longo da campanha e mesmo nas semanas em que vem esperando para assumir a presidência da Argentina, Milei deu sinais contraditórios sobre qual plataforma que pretende colocar em prática quando estiver à frente da Casa Rosada.

Sua chegada ao poder lembrou, especialmente no Brasil, as cenas protagonizadas nos últimos anos por Bolsonaro: um outsider de extrema-direita que decidiu estabelecer uma comunicação direta com o público. Pode parecer fácil comparar os dois personagens, tanto em termos de discursos, práticas e mesmo na dimensão estética, mas há diferenças.

Para o pesquisador Sergio Morresi, professor da Universidad Nacional del Litoral, na Argentina, e especialista em grupos políticos de direita, Milei não preenche os requisitos necessários para ser situado na da extrema-direita, e sim de uma ‘direita radicalizada’. O motivo é que, ao contrário de Jair Bolsonaro no Brasil ou Donald Trump nos EUA, Milei, ao menos ainda, não defendeu abertamente um golpe de Estado.

Milei não é de ‘extrema-direita’ no sentido tradicional do termo, porque a extrema direita está associada à violência e aos golpes de Estado”, explica o professor, destacando a importância das nuances conceituais. “É mais apropriado classificá-lo como político de direita radicalizada.” ‘Extrema-direita’ e ‘direita radicalizada’, reforça, podem ser nomes parecidos, mas divergem no grau de radicalismo.

Michele Prado, pesquisadora do “Monitor do Debate Político no Meio Digital”, da Universidade de São Paulo (USP), experiente no monitoramento de movimentos de direita radical, considera que, ideologicamente, Milei mistura várias correntes que, embora se assemelhem, dificultam encontrar a divisão, graças ao que ela chama de ‘pulverização dos limites ideológicos’.

“Milei é um político de direita radical e de extrema-direita, nomes sob os quais é preferível definir como far right. Entretanto, não se resume a isso.” Embora o próprio Milei fale de si mesmo como “liberal libertário”, as ideias ventiladas por Milei, reitera a pesquisadora, não têm a ver com o liberalismo clássico.

“Não é um foco nos pilares liberais que sustentam a própria ideia de democracia liberal: proteção às minorias, separação dos Poderes, imprensa livre…”, explica.

Milei se associa publicamente ao chamado libertarianismo, uma corrente econômica de nicho que emergiu nos anos 70 nos Estados Unidos e, na década seguinte, influenciou as políticas de Ronald Reagan nos EUA e Margaret Thatcher no Reino Unido: redução do tamanho e do papel do Estado, a desregulamentação e ênfase no livre mercado.

“Já que esse é o nome que Milei dá a si mesmo, até pode-se chamá-lo assim”, destaca Morresi, com um toque de ceticismo. Para o pesquisador, porém, a questão é mais de estilo do que substância: “Do ponto de vista conceitual, ele não é nem liberal e nem libertário.”

Milei poderia ser classificado, segundo Michele Prado, como representante de um ‘paleolibertarianismo’: o ‘cada um por si’ elevado a filosofia política.

“Essa corrente defende um Estado quase zero, em termos econômicos, mas, na questão política, agrega a rejeição às minorias e se aproxima da autocracia”, explica. “É uma das bases de sustentação do movimento de supremacia branca nos Estados Unidos.”

Até onde vai o apego ideológico? 

Dificilmente um personagem político importante pode ser definido por um único termo conceitual. Essa premissa serve para entender como Milei pode ser, ao mesmo tempo, um político da direita radicalizada e chamar a si mesmo de “anarco-capitalista”.

Um ponto crucial é saber se Milei, ao assumir a Casa Rosada, conseguirá manter sua postura radical ou se as circunstâncias o forçarão a abraçar uma verve mais moderada. A frágil situação econômica da Argentina deve limitar a capacidade do país de suportar decisões econômicas amalucadas.

Ou seja, a gravidade da crise econômica argentina pode se tornar o divisor de águas no que diz respeito ao tipo de liderança que Milei exercerá. Diante da severidade da situação econômica, Milei pode ser forçado a adaptar-se, não por uma mudança ideológica, mas pelas imposições das circunstâncias econômicas.

Michele Prado reforça a importância de não subestimar a natureza radical de Milei. “Ele não pertence à direita democrática. Acreditar que radicais se tornam moderados no poder é um equívoco, como a História e experiências recentes no Brasil demonstram.”.

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