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Milei rasga a fantasia

O dito libertário rende-se à “casta política” antes mesmo de assumir e divide o poder com Mauricio Macri

Imagem: Juan Mabromata/AFP
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Bastaram poucos dias após a vitória nas urnas para o presidente eleito Javier Milei ver seu bordão de campanha ser desmoralizado. A frase “a casta tem medo” deu lugar à chacota “a casta tem emprego”. É uma resposta irônica dos adversários à veloz rendição de Milei, que vestiu na corrida presidencial a fantasia de outsider, às forças políticas tradicionais. O autointitulado “libertário” toma posse no domingo 10, mas seu ministério reúne várias caras conhecidas dos tempos do ex-presidente Mauricio Macri, expoente da velha direita.

Os principais cargos no futuro governo, principalmente na área econômica, serão ocupados por aliados de Macri, em uma equipe integrada até por alas do peronismo de oposição a Cristina Kirchner. Acossada por uma inflação de 142,7% ao ano, escassez de dólares, aumento da pobreza e falta de perspectiva, a maioria dos argentinos decidiu apostar na “novidade” representada por Milei. O economista prometeu um brutal corte de gastos e um saldão das estatais, além da dolarização da economia e o fim do Banco Central. “Tudo que possa estar nas mãos do setor privado, vai estar nas mãos do setor privado”, declarou no dia seguinte à vitória. A ver. Durante a campanha, ­Milei prometia nomear o economista Emilio ­Ocampo à presidência do BC com a missão de extinguir a instituição. No fim, por força das circunstâncias, escolheu o ex-ministro da Economia de Macri, Luis Caputo, ortodoxo tradicional. A proposta de fechar a instituição e dolarizar a economia argentina ficam, por ora, para um futuro incerto. Existe uma razão prática: não há dólares suficientes em circulação para cumprir a promessa. O anúncio da equipe econômica produziu baixas entre fieis apoiadores de Milei. Ocampo desistiu de integrar a administração e Carlos ­Rodríguez, outro conselheiro econômico, também rompeu relações com La ­Libertad Avanza, partido do presidente eleito.

As escolhas do novo governo expõem certo improviso e a necessidade de garantir a governabilidade. Com minoria no Congresso e sem um único governador da própria legenda, Milei chega enfraquecido à Casa Rosada. Será capaz de negociar ou tentará outros caminhos? Escolhida como chanceler, Diana Mondino deu a entender que, caso o Parlamento não colabore, governar por decreto será uma opção. O primeiro pacote de medidas está quase pronto. Federico­ Sturzenegger, assessor econômico de Milei e presidente do Banco Central nos tempos de Macri, dá o último retoque na chamada “lei ônibus”, pensada para promover uma profunda reforma do Estado. Algo similar foi feito por Luis Lacalle Pou no Uruguai, por meio da Lei de Urgente Consideração, imposta não sem polêmicas, discussões e protestos.

A aproximação de Macri e Milei teve início logo após os resultados das eleições primárias em agosto. Naquele momento, os eleitores deram o primeiro recado. La Libertad Avanza foi o partido mais votado, com 30%, quase o dobro do que apontavam as pesquisas de opinião. Diante dos resultados, Macri abandonou o barco de Patricia Bullrich, candidata de sua coalizão, o Juntos por el ­Cambio, e iniciou o cortejo ao extremista. Não por outra, Bullrich, segunda colocada nas primárias, acabaria em terceiro e fora do segundo turno da disputa em novembro.

Aliados de primeira hora do extremista perderam espaço na composição do governo

“Em termos ideológicos, as propostas da direita macrista se parecem bastante àquelas de Milei”, afirma Micaela ­Cuesta, doutora em Ciências Sociais e coordenadora do Laboratório de Estudos sobre Democracias e Autoritarismos da Universidade Nacional de San Martín. São visões compartilhadas sobre o corte de gastos e a abertura da economia, entre outras. A aproximação prévia foi, no entanto, uma novidade. “Em geral, as direitas globais costumam aliar-se ao partido de centro para evitar a vitória da extrema-direita.” Segundo a acadêmica, quase todos os votos macristas migraram para Milei, certos de que muitas das propostas encampadas pelo então candidato não passavam de discurso. “Muitos eleitores votaram pensando que ele não faria o que dizia pretender fazer.”

Haveria, portanto, uma disposição dos apoiadores mais fieis de Milei, cerca de 30% do eleitorado, a aceitar um perío­do de provação supostamente necessário. A aliança à direita tradicional, mesmo contraditória em relação ao discurso anticasta da campanha, seria o menor dos problemas para este grupo, ressalta Julio Gambina, professor de Economia Política da Universidade Nacional de Rosário. “De forma alguma o eleitorado de Milei está sendo enganado. O personagem está mudando todos os dias. O eleitorado votou por uma mudança, sabendo de sua proposta de cortes e que isso demandaria muitos movimentos”, ressalta.

O loteamento dos cargos para a tradicional casta tão vilipendiada durante a campanha não se restringiu aos macristas. Outros nomes estelares de La ­Libertad Avanza perderam espaço após a vitória nas urnas. Um deles é o de ­Carolina Píparo, candidata derrotada ao governo da província de Buenos Aires. ­Píparo havia sido apontada como diretora-executiva da Administração Nacional da Seguridade Social e chegou a anunciar uma reunião de transição com a atual diretoria do órgão. Horas depois, Píparo soube, constrangida, que o cargo acabara de ser oferecido a Osvaldo Giordano, ligado a Juan Schiaretti, da direita do peronismo. Para o jornalista Pablo Ibáñez, as negociações podem ser interpretadas como uma mudança pragmática do novo presidente. O que estaria em jogo, mais do que a ideia de fraude eleitoral, seria uma fraude emocional. “É parte dessa ideia de que primeiro deve vir o sofrimento para depois vir algo positivo. Milei diz que os primeiros seis meses serão terríveis e logo a situação vai começar a melhorar. O pedido de sacrifício é dirigido a quem já faz sacrifícios: pobres, trabalhadores, desempregados, beneficiários de programas sociais. É altamente provável que esses setores vivam pior ainda”, diz Ibáñez. “Aconteceu no governo Macri. Ele afirmava que o primeiro semestre seria crítico, mas que no segundo a economia se recuperaria, viria uma chuva de investimentos. Esse segundo semestre nunca chegou.”

A grande incógnita, sugere Gambina, é saber se Milei terá ou não capacidade de transformar o triunfo eleitoral em consenso político. A disputa não se limitará aos corredores do Congresso. Com a particularidade de ter sido eleito com pouca aceitação às suas propostas pontuais, a reação social aos cortes de auxílio social e possível aumento de preços com o afrouxamento do controle gera um ambiente de bomba-relógio. O que leva a uma nova pergunta, a ser respondida nos próximos meses: qual é o limite da paciência dos argentinos por dias melhores? •

Publicado na edição n° 1289 de CartaCapital, em 13 de dezembro de 2023.

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