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Como o adversário Donald Trump, Joe Biden guardava em casa documentos confidenciais do governo. Mas há diferenças nos dois episódios

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Pau que dá em Trump, dá em Biden - Imagem: Mandel Ngan/AFP
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Encontrar documentos secretos do governo dos Estados Unidos empilhados no escritório de um resort na Flórida, encaixotados numa casa em Indiana ou amontoados numa garagem em Delaware, embora bizarro, tornou-se, nos últimos meses, um fato absolutamente trivial. Documentos confidenciais que deveriam estar sob proteção do Arquivo Nacional do país foram descobertos em endereços do atual presidente Joe Biden, do seu antecessor ­Donald Trump e do ex-vice Mike Pence.

Republicanos e democratas, que especialmente nos últimos anos travam uma batalha melindrosa de polarização política, uniram-se sob o mesmo descalabro. Atônitos, eleitores tentam acompanhar o rumo dessa história que tem como um dos desdobramentos investigações dos dois presidentes por manuseio de materiais classificados de forma inadequada. Um escândalo para a imagem e as relações públicas de qualquer partido.

Pence, que teve o nome envolvido somente no início desta semana, até o fechamento desta edição estava fora do radar dos investigadores. Na carta enviada ao Arquivo Nacional datada de 18 de janeiro, exposta ao público apenas na terça-feira 24 pela rede de televisão CNN, Greg Jacob, advogado do ex-vice-presidente, afirma que “um pequeno número de documentos com marcas classificadas foi inadvertidamente encaixotado e transportado” para a casa de Pence, no fim do governo Trump.

Ao todo seriam 12 páginas. Na mensagem, o representante diz que o republicano se coloca à disposição das investigações, reitera que o cliente leva a sério o manuseio de materiais sigilosos, mas que desconhecia estar sob posse do material. De fato, em novembro do ano passado, ao ser questionado se mantinha algum conteúdo confidencial da Casa Branca, ­Pence respondeu que “não havia razão para guardar documentos secretos, principalmente se estivessem em uma área desprotegida”. À época, republicanos estavam no olho do furacão, desde que buscas foram realizadas em ­Mar-a-­Lago, ­resort onde o ex-presidente Donald Trump reside, promove eventos do partido e aluga para cerimônias privadas.

Segundo levantamento do jornal The New York Times, cerca de 50 eventos políticos foram realizados na mansão de Trump nos primeiros 19 meses após a sua saída do cargo. Centenas de convidados e funcionários circularam pela propriedade, revelando que qualquer visitante com o olhar um pouco mais atento poderia facilmente ter acesso a documentos secretos e causar, segundo o Arquivo Nacional, “danos excepcionalmente graves à segurança nacional”. A batida policial foi duramente criticada por trumpistas, que sugeriram perseguição política, embora o governo federal tenha afirmado que, desde janeiro de 2022, os órgãos responsáveis se esforçaram para reaver o conteúdo sigiloso. O ex-presidente e sua equipe recusaram-se a cumprir a intimação que exigia a devolução do material. No mandado de busca aprovado pelo tribunal, o Departamento de Justiça citou possíveis violações de três estatutos: obstrução de investigação federal, retenção ilícita de informações de defesa nacional e ocultação ou remoção de registros do governo. Em agosto, com mandado de busca e apreensão em mãos, agentes do FBI conseguiram, enfim, recuperar mais de 13 mil documentos, 103 deles classificados e 18 ultrassecretos.

Os arquivos foram levados à casa do presidente por engano, argumentam os democratas, e logo foram devolvidos

Com as buscas em Mar-a-Lago transmitidas em tempo real, Trump tentou negar irregularidades e afirmou que tinha “desclassificado os documentos” antes de levá-los para sua casa. Especialistas em segurança nacional negam, porém, que isso seja possível. Até então, tudo se desenhava para que as chances de uma candidatura em 2024 fossem ainda mais comprometidas. Durante entrevista à rede de televisão CBS News em outubro, Biden chegou a ser questionado sobre como reagiu ao ver as fotos do material encontrado em Mar-a-Lago. “Eu fiquei me perguntando como isso poderia acontecer e como alguém poderia ser tão irresponsável. Pensei: ‘Quais dados estavam lá que podem comprometer fontes e métodos?’ É totalmente irresponsável.”

Ironia do destino, semanas após a entrevista, foi a vez do próprio Biden ser pego em contradição. Em 2 de novembro, enquanto advogados arrumavam o escritório que usava periodicamente, foram encontrados “em um armário trancado” aquela que seria a primeira remessa de documentos com marcações classificadas. A notícia só se tornou pública em 9 de janeiro e, depois dela, outras viriam.

Richard Sauber, conselheiro especial do presidente, diz que logo ao ser informada, a Casa Branca notificou a Administração Nacional de Arquivos e Registros, que recuperou os documentos no dia seguinte. A descoberta levou os advogados de Biden a revistarem a casa principal do presidente em Wilmington e a casa de férias em Rehoboth Beach, ­Delaware. Em Wilmington, os advogados encontraram mais documentos, que o procurador-geral dos EUA, Merrick Garland, disse terem sido entregues ao FBI. Ao todo foram resgatados cerca de 20 documentos em um intervalo de seis semanas.

De acordo com o Washington Post, cerca de dez documentos com marcas classificadas foram encontrados no antigo escritório de Biden, incluindo algumas “informações compartimentadas confidenciais”, chamadas de SCI. Nesse caso, segundo fontes ouvidas pelo jornal, centenas e milhares de pessoas têm acesso aos dados. Porém, alguns dos materiais recuperados em Mar-a-Lago foram categorizados como “Programas de Acesso Especial”, sob a sigla SAP, e que somente um pequeno e restrito grupo de militares de alto nível e oficiais de inteligência podem acessar – deixando a situação de Trump ainda mais delicada.

Assim como fez com o episódio de Mar-a-Lago, ao nomear um promotor especial para cuidar do caso, Garland designou um advogado especial para investigar o incidente dos documentos de ­Biden. Aos republicanos resta acusar o presidente de hipócrita e torcer para que as investigações o comprometam de alguma maneira. Para os democratas, o fato de não haver sinais de cometimento de crimes por parte de Biden e sua equipe é um grande alívio. Por ora, a manobra a exigir maior empenho é conseguir provar para o eleitor que as semelhanças entre os dois casos são significantemente menores do que parecem. Só assim será possível usar esse escândalo contra Trump ou, caso contrário, ele conseguirá escapar. Mais uma vez. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1244 DE CARTACAPITAL, EM 1° DE FEVEREIRO DE 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Mau hábito “

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