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Mais um outsider

Filho do ‘Magnata da Banana’, o azarão Daniel Noboa vai disputar o segundo turno com a esquerdista Luisa González

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Estratégias. Noboa apela aos eleitores mais jovens. González instiga a nostalgia do bem avaliado governo de Rafael Correa – Imagem: Redes sociais
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Em uma eleição atípica, maculada pelo assassinato de um presidenciável e diversos outros atentados políticos, a esquerdista Luisa González, candidata do Revolução ­Cidadã e respaldada pelo ex-presidente Rafael Correa, confirmou o favoritismo nas pesquisas e largou na dianteira da corrida presidencial no Equador, com 33,4% dos votos válidos. Enfrentará no segundo turno, em 15 de outubro, o empresário liberal Daniel Noboa, um outsider que surpreendeu com 23,5% dos sufrágios no domingo 20. Proveniente de uma das famílias mais ricas da América Latina, reconhecida pelos equatorianos por seu império bananeiro, o neófito deputado eleito em 2021 figurava com um porcentual de único dígito até poucas semanas antes do pleito. Agora já é visto como favorito por alguns analistas que apostam em sua capacidade de herdar votos de candidatos conservadores derrotados.

No único debate presidencial, realizado uma semana antes da votação, ­Noboa teve um bom desempenho e acabou favorecido pela intensa troca de acusações entre candidatos mais bem posicionados nas pesquisas. Durante a campanha, ele procurou distanciar-se das provocações entre apoiadores e oponentes de Correa. Em vez disso, apresentou-se como um candidato antissistema, com discurso focado na geração de empregos. Essa postura angariou a simpatia de eleitores mais jovens, não identificados com a velha polarização política em torno do ex-presidente socialista, observa ­Caroline ­Avila, especialista em comunicação política da Universidad de Azuay, ao Washington Post. Mesmo não sendo o candidato mais associado ao tema da segurança pública, ele “oferece um tipo de política jovem e revigorante que não é manchada pelo conflito”, avaliou a pesquisadora.

Na dianteira da corrida presidencial, a ex-deputada prova que o correísmo segue vivo no país

“A juventude optou pela alternativa de Daniel Noboa”, celebrou o candidato, durante uma coletiva de imprensa logo após a confirmação de seu nome. “Não seria a primeira vez que uma nova proposta dá uma volta no establishment eleitoral”, acrescentou, referindo-se a si mesmo. Para variar, a pose de outsider tem cheiro de engodo. Embora tenha no currículo uma única e breve passagem pela Assembleia Nacional, o empresário beneficiou-se do enorme recall político de seu pai, Álvaro Noboa, conhecido como o “Magnata da Banana”, que disputou a Presidência da República cinco vezes.

Desde que Lasso dissolveu a Assembleia Nacional e antecipou as eleições gerais para escapar de um processo de impeachment por corrupção, o Equador mergulhou em um cenário de instabilidade e violência política sem precedentes. Após o assassinato do presidenciável Fernando Villavicencio, em 9 de agosto, o presidente decretou estado de exceção, mas mesmo com a mobilização das Forças Armadas para reforçar a segurança dos candidatos não foi possível interromper a onda de ataques.

Medo. Zurita, o substituto do candidato executado, compareceu às urnas com colete à prova de balas e capacete – Imagem: Galo Paguay/AFP

Jornalista de formação, Villavicencio vinha sendo ameaçado por um dos principais cartéis de drogas equatorianos, Los Choneros, incomodados com o feroz discurso do candidato contra o que chamava de “narco-Estado”. Suas propostas miravam na militarização dos portos para controlar o narcotráfico, na criação de uma Unidade Antimáfia com apoio internacional e na construção de um presídio de segurança máxima para os criminosos mais perigosos. Um dia após o atentado, ­Estefany Puente, postulante ao Parlamento, foi atingida por um tiro de raspão no braço esquerdo após uma dupla de pistoleiros disparar contra seu carro. Passados quatro dias, Pedro Briones, líder regional do Revolução Cidadã, foi executado em sua casa, na cidade de Esmeraldas, na fronteira com a Colômbia. Três dias antes da votação, o próprio Noboa precisou interromper uma caminhada após ouvir disparos no meio da multidão. Felizmente, não houve mortos nem feridos.

A despeito do banho de sangue promovido por sicários do narcotráfico, a população não se deixou intimidar. O pleito teve participação recorde. Ao todo, 82,26% dos 13,4 milhões de cidadãos aptos a votar compareceram às urnas no domingo 20. Em algumas cidades, os eleitores enfrentaram longas filas para acessar as cabines de votação, após passarem por revistas corporais e detectores de metais. Muito além da insatisfação com os rumos políticos do país, a presença massiva de eleitores desnuda o inconformismo com a violência que tomou de assalto o país nos últimos anos, fruto da guerra travada, nas ruas e nos presídios, por grupos criminosos financiados por cartéis mexicanos e colombianos. Os dados são aterradores. Até 2018, o Equador registrava 9,8 homicídios a cada 100 mil habitantes. No ano passado, a taxa subiu para 25,9, quase o dobro de 2021. A barbárie afetou duramente a indústria do turismo, setor vital da economia equatoriana.

Como era de se esperar, o debate eleitoral acabou contaminado pela série de atentados. Christian Zurita, o substituto de Villavicencio, fez questão de comparecer ao local de votação com colete balístico e capacete. Apesar de entrar na ­disputa faltando dez dias para as eleições, ele ficou em terceiro lugar, com 16,47% dos votos – as cédulas eleitorais ainda traziam a foto do presidenciável assassinado. “Nas eleições passadas usei o TikTok, desta vez venho com colete à prova de balas”, emendou o nanico candidato Xavier Hervas, com a proteção por baixo da camisa. Ele amealhou 0,5% dos votos.

Refugiado na Bélgica, Rafael Correa atribui o assassinato de um rival a um complô contra sua candidata

Uma semana após o atentado contra Villavicencio, o ex-presidente ­Rafael Correa atribuiu a morte do concorrente a um complô para impedir a vitória de sua candidata, Luisa González, logo na primeira votação. “Ele estava em quarto ou quinto nas pesquisas, não ia ganhar nunca, então era mais útil morto do que vivo. E para nos prejudicar, já que somos seus arquirrivais”, afirmou o ex-presidente à Folha de S.Paulo. “Agora há uma campanha brutal nas redes culpando-nos pela morte. Quem ganha com isso é a extrema-direita, pois sabiam que íamos vencer no primeiro turno.”

Acusado de cobrar propinas de grandes empresas e condenado à revelia por corrupção, Correa se diz vítima de uma perseguição judicial semelhante à enfrentada por Lula, no Brasil, e Cristina Kirchner, na Argentina. Desde 2017 vive na Bélgica, país de origem de sua esposa, Ann Malherbede. A Justiça equatoriana solicitou a extradição do ex-presidente, para que ele cumprisse pena de oito anos de prisão, mas o pedido foi negado. Em abril deste ano, o governo belga reconheceu seu status de refugiado. O episódio é usado pelo socialista como prova de que foi vítima de lawfare durante a gestão de Lenin Moreno, ex-aliado que se voltou contra o padrinho após chegar ao poder. “É um alívio. Quando te dão essa proteção, isso mostra que você está sendo perseguido”, disse Correa à agência France Presse.

Se, por um lado, Daniel Noboa tende a atrair os eleitores de candidatos conservadores, a exemplo do direitista Jan ­Topic (14,69% dos votos válidos), por outro, é inegável que o correísmo mantém uma base forte e leal. Sozinho, o partido Revolução Cidadã obteve 39,32% dos votos para a Assembleia Nacional, um desempenho superior ao de Luisa González na corrida presidencial. É possível que, com o arrefecimento da violência política no Equador, a candidata volte ao inconteste favoritismo que tinha antes da onda de atentados. Para tanto, a ex-deputada de 45 anos deve estimular, nos eleitores, o sentimento de nostalgia em relação ao governo de Correa (2007 a 2017), quando as taxas de homicídio eram baixas e o boom no mercado de commodities permitiu retirar milhões de equatorianos da situação de pobreza. “Vamos ter aquela pátria novamente, com esperança, dignidade e segurança”, discursou a candidata após o encerramento da votação.

Cabo eleitoral. O ex-presidente tem uma base fiel, mas também enfrenta uma enorme rejeição em setores da sociedade – Imagem: Natália Garcia/Universidade Nacional de Quilmes

A eleição, convém ressaltar, é para um mandato-tampão de um ano e meio. Como o presidente Guilherme Lasso acionou o dispositivo da “morte cruzada”, na qual renuncia ao cargo ao mesmo tempo que dissolve a Assembleia Nacional, o novo líder eleito só ficará no poder até maio de 2025, quando está prevista a realização de nova disputa presidencial.

Em um plebiscito simultâneo, quase 59% dos eleitores equatorianos votaram, no domingo 20, pelo fim da exploração de petróleo em uma de suas maiores jazidas, o Parque Nacional Yasuní, considerado o coração da Amazônia equatoriana. A votação foi celebrada pelo Yasunidos, grupo ambiental que coletou 757 mil assinaturas e enfrentou uma longa batalha judicial para obrigar a Justiça Eleitoral a realizar a consulta popular.

O parque abriga, em mais de 1 milhão de hectares, ao menos 2 mil espécies de árvores e arbustos e 610 espécies de pássaros, sem contar com as demais espécies. A exploração do chamado “Bloco 43” ocorre desde 2016. O governo Lasso, que sempre atuou em defesa das perfurações, estima que a jazida seja responsável por 12% dos 466 mil barris de petróleo produzidos por dia pelo país. Com a decisão, a Petroecuador tem prazo de um ano para encerrar os trabalhos e remover todo o maquinário do bioma amazônico. •

Publicado na edição n° 1274 de CartaCapital, em 30 de agosto de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Mais um outsider’

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