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Requerentes de asilo no Reino Unido são deixados no limbo pelo governo

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Prisão? Requerentes de asilos permanecem confinados em um barco no Porto de Dorset. ONGs acusam o governo de atrasar os processos em análise – Imagem: Ashley Smith
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Quando Saba* se converteu ao cristianismo, entendeu que não podia mais ficar no Irã. Como portadora de deficiência e vítima de perseguição religiosa, permanecer lá “significaria ser morta”, disse ela a The Observer com a voz rouca de emoção. Ela fugiu em segredo, e pediu asilo no Reino Unido no segundo semestre de 2022. “Eu estava com medo”, afirmou. “Só queria chegar a um local seguro.” Desde então, Saba aguarda o processamento do seu pedido de asilo. “A espera é terrível. Tenho pesadelos em que estão me matando, acordo gritando. Sou deficiente visual e sofro dos rins. O estresse afeta minha saúde, minhas mãos e meus pés tremem e ficam dormentes.”

O primeiro-ministro britânico, Rishi Sunak, começou 2024 anunciando que 92 mil pedidos de asilo “atrasados”, feitos antes de 28 de junho de 2022, foram resolvidos. Desde então, ele foi acusado de enganar o público pela Autoridade de Estatística do Reino Unido. Mais de 4,5 mil casos “complexos”, que incluem migrantes com condições médicas graves, ainda aguardam uma decisão de asilo, como Saba e outros milhares de refugiados. “A definição de um caso complexo não é clara”, afirmou a chefe de serviços clínicos da filial londrina da Freedom from Torture (Liberdade da Tortura), que não quis que seu nome fosse divulgado. “Revisei os casos de asilo em Londres que ainda fazem parte da lista pendente, e não parecem se enquadrar na categoria de complexidade mencionada pelo governo.” As críticas a Sunak não surpreendem Saba. “Se você eliminou o atrasado, por que ainda estou esperando a resposta? Sinto que o governo do Reino Unido me esqueceu.”

“O atraso nos pedidos de asilo está longe de ser resolvido”, disse Josephine Whitaker-Yilmaz, gestora de políticas e assuntos públicos da Praxis, instituição que defende os direitos dos migrantes. “Mais de 100 mil requerentes ainda aguardam a decisão sobre seus pedidos de asilo. Quase 5 mil deles estão esperando há pelo menos 18 meses, e muitos ainda mais.”

Entre eles está Ahmed*, que foi torturado na Síria e fugiu com sua família para o Líbano, temendo por sua vida, antes de pedir asilo no Reino Unido. Ele espera, desde meados de 2022, por uma segunda entrevista com o Ministério do Interior para decidir sua solicitação. Ahmed está separado da esposa e do filho bebê, que tem um grave problema de saúde. Ele luta contra complicações de saúde física e mental, incluindo as causadas pela tortura, que foram agravadas por sua longa espera. “Espero que o Ministério do Interior considere meu caso o mais rápido possível”, declarou. “Meu filho está doente. Ele precisa da minha ajuda, eu sou o pai dele. Mas estamos emperrados.”

“A espera é terrível”, diz a iraniana Saba. “Só queria chegar a um local seguro”

Usman Aslam é sócio sênior do escritório de advocacia Mukhtar & Co., que representa requerentes de asilo como Ahmed. Ele descreve os impactos dos atrasos como “enormes”, e diz que os solicitantes são tratados “como gado”. “As regras de imigração exigem que as decisões sobre pedidos de asilo especiais ocorram ‘o mais rápido possível, sem prejuízo de um exame adequado e completo’”, disse Aslam. “No caso de um cidadão sírio que forneceu documentos de identificação, não deveria ser exigido qualquer exame adicional, especialmente se o requerente tiver obtido autorização de entrada numa rota de visto, de modo que sua identidade foi aceita. A política do Ministério do Interior em relação à Síria é conceder asilo.” Ahmed recebeu o estatuto de refugiado cinco dias depois de narrar sua história a The Observer e 18 meses depois do primeiro pedido de asilo.

A iniciativa Freedom from Torture apoia migrantes que esperam há anos o processamento de seus pedidos de asilo, muitos dos quais são sobreviventes de tortura. “A pesquisa mostra que é realmente importante que um paciente se sinta seguro antes de poder lidar com o trauma”, explicou a chefe de serviços clínicos. “Mas para aqueles que aguardam decisões de asilo essa sensação de segurança não está sendo efetiva. Eles não se sentem seguros, em parte porque têm medo de ser transferidos para seus países de origem. Isso tem um impacto na sua recuperação.”

Rose*, apoiada pela Praxis, pediu asilo pela primeira vez em 2019 e ainda aguarda uma decisão. “Quando vim para o Reino Unido, era uma pessoa feliz porque pensava ter encontrado um lugar onde poderia ser livre”, afirmou. “Eu me senti como um pássaro que foi solto da rede. Percebo que estou realmente presa”, continuou ela, falando entre lágrimas. “Não me sinto livre por dentro. Não sei se estou avançando. Não sei quanto tempo o Ministério do Interior vai me fazer esperar.”

Kemmis disse: “Os requerentes de asilo que não receberam estatuto não têm sentimento de pertencimento. Por mais que tentem se envolver no tratamento e na recuperação, é realmente difícil quando estão no limbo. E não está sob nosso controle, nem sob o controle deles, está sob o controle do Ministério do Interior”.

Um porta-voz do ministério respondeu: “Alguns casos de asilo são mais complexos que outros. Quando há necessidade­ de uma investigação mais profunda, é absolutamente correto que tomemos essas medidas”. E acrescentou: “O bem-estar dos requerentes de asilo é levado extremamente a sério”. •


*Os nomes foram modificados para proteger as identidades. Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1298 de CartaCapital, em 21 de fevereiro de 2024.

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