BUENOS AIRES – Quando Patricia Sosa chegou caixa de um pequeno mercado no bairro de Villa Crespo, em Buenos Aires, poucos dias depois da vitória de Javier Milei, cruzou os dedos e torceu. “Pensei que ia gastar um valor, mas a feira me saiu quase 30% mais cara”, diz a enfermeira aposentada. “Nós imaginávamos que os preços iam subir depois das eleições, mas não tanto”, diz, desconcertada.
“Se o dinheiro já não estava dando, agora é que eu já não sei o que pode acontecer”, reflete Patrícia, equilibrando sacolas repletas de carnes, verduras, queijo, mate e itens de higiene. “Sei da escassez de dólares, dos problemas de importação e tudo o mais. Mas uma disparada dessa me impressiona”, completa a argentina, perplexa com o súbito aumento nos preços pós-eleições.
Ela votou em Milei, e apesar do aperto no bolsos tem fé que o novo presidente argentino fará os ajustes necessários para estabilizar a cambaleante economia argentina. “Como é que poderia ficar pior?”.
O dia a dia na Argentina após as eleições
A chegada de Javier Milei ao poder já reflete em inquietações e incertezas, mesmo antes de sua posse, marcada para o domingo 10. Os preços dos produtos básicos, em alta desde o fim das eleições, sinalizam uma preocupante tendência.
Neste cenário, esperança e a apreensão dividem o clima político na Argentina. Os mais abastados, menos vulneráveis às mudanças de governo, comemoram. Já aos mais pobres, dependentes da assistência estatal, resta fazer as contas para o futuro.
É o caso de Miguel Ángel, de 38 anos. Há dois vivendo nas ruas, ele expressa sua angústia diante do novo governo: “Com esse presidente, nós que estamos nas ruas vamos sofrer feito uns condenados”.
Uma simples ida ao supermercado reflete o impacto dessa transição. Miguel relata a escalada dos preços: “Tudo aumentou de uma vez. O refrigerante mesmo eu comprava por 300 pesos, agora está uns 380, 400. Um pacote de macarrão custava 250”, explica, esperando um gesto de solidariedade dos que entram e saem de um mercado no bairro de Balvanera, no centro portenho.
A Argentina clama pela estabilidade econômica. Mas pode mergulhar em uma instabilidade e incertezas ainda mais dramáticas. Em novembro, um grupo de mais de cem economistas do vários países, incluindo Thomas Piketty e Branko Milanovic, ex-economista-chefe do Banco Mundial, lançou uma carta apontando que as ideias econômicas de Milei “passam longe das complexidades das economias modernas, ignoram as lições das crises históricas e abrem a porta para acentuar desigualdades”.
A OCDE também entrou no jogo para tentar projetar o futuro da Argentina sob Milei. Um informe do grupo sugere que a rápida necessidade de cortar gastos públicos, em meio a tensões sociais, pode desencadear instabilidade política. Isso poderia erodir ainda mais a confiança e atrasar investimentos vitais para a economia do país.
Como os preços subiram além da inflação oficial
Nas semanas seguintes após as eleições, a Argentina enfrentou aumentos de preços que superaram os índices habituais dos últimos anos. Alimentos, bebidas, produtos de origem animal e vegetal, gasolina e outros itens essenciais sofreram altas acima da média, incluindo reajustes de mais de 50% em alguns casos.
Dados da consultoria Eco Go mostram que a inflação entre os dias 21 e 24 de novembro – ou seja, no período imediatamente após as eleições – foi de 8%. É como se quase o dobro da inflação anual do Brasil fosse registrada em menos de uma semana na Argentina. Segundo quase todas as projeções econômicas, a escalada nos preços deve continuar.
Este fenômeno não é apenas consequência da eleição, mas também resulta das complexas estratégias econômicas adotadas pela Argentina, incluindo iniciativas de Sergio Massa, rival de Milei nas urnas e atual ministro da Economia do país.
A maré dos preços é um jogo de expectativas no qual o mercado (produtores e fornecedores, por exemplo) tenta se proteger. Seja como for, são os consumidores que enfrentam as consequências mais diretas dessa dinâmica, lidando com os impactos imediatos nas prateleiras dos supermercados.
Para o economista Samuel Pessôa, chefe do Centro de Crescimento Econômico do FGV IBRE, o pico inflacionário ocorrido depois das eleições tem a ver com o movimento do câmbio na Argentina e resulta, principalmente, de medidas tomadas pelo atual governo, ainda no período eleitoral.
Um dos motivos da angústia da economia argentina, destaca, se deve à necessidade do país em importar bens e serviços, contrastando com suas insuficientes reservas em dólares. “A conta não fecha. Por isso, uma das maneiras de lidar com o problema é controlando a conta de capital [investimentos, empréstimos e recursos externos]. Isso faz com que o país tenha muitos câmbios diferentes”, diz o economista.
Esta escassez de reservas em dólar dificulta as importações, forçando os fornecedores a encontrar alternativas, muitas vezes onerosas para os consumidores, para manter o fluxo de mercadorias.
Recentemente, uma mudança na fórmula que criou o “dólar exportador” – um dos tantos tipos de dólar que existem no país – elevou seu valor em relação ao peso, impactando diretamente nos preços dos produtos. Apesar da crise, autoridades, entidades e comerciantes sustentam que o país não enfrenta risco real de desabastecimento
Durante as eleições, Sergio Massa adotou estratégias para controlar os preços e impulsionar o consumo. Samuel Pessôa relembra que uma das ações de Massa foi beneficiar os exportadores com uma taxa de câmbio mais vantajosa. “Isso estimulou pessoas que tinham produtos como milho e soja guardados, por exemplo, a ‘desovar’ os estoques, aproveitando o câmbio mais favorável, e gerou uma entrada momentânea de divisas e aliviou o câmbio“, explica Pessôa.
No entanto, a fatura desse alívio cambial chegou e os benefícios obtidos com a valorização do câmbio e algum alívio no custo de vida acabaram se revertendo. “Essa pressão inflacionária atual é, em parte, consequência dessa dinâmica”, completa.
A inflação elevada também é impulsionada pelo aumento na circulação monetária. Na opinião de Pessôa, as isenções fiscais implementadas por Massa, que abarcaram diversos setores, aumentaram os gastos da população. Um exemplo é o programa de isenção do IVA iniciado em setembro, com término previsto para 31 de dezembro.
Prever a inflação argentina é complexo, mas estima-se que ela continue alta no curto prazo e em 2024. A EcoGo projeta 13% em novembro, enquanto a OCDE prevê 157,1% em 2024, ressaltando a incerteza política como um fator crítico.
Enquanto isso, a população argentina tenta reconciliar os discursos do novo governo com a realidade de suas compras diárias, enfrentando a desvalorização do peso. A economia, central na campanha de Milei, continua sendo o foco.
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