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Incerteza e disparada nos preços precedem a posse de Javier Milei na Argentina

Alimentos, bebidas, produtos de origem animal e vegetal, gasolina e outros itens essenciais sofreram altas acima da média, incluindo reajustes de mais de 50% em alguns casos

Imagem: Juan Mabromata/AFP
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BUENOS AIRES – Quando Patricia Sosa chegou caixa de um pequeno mercado no bairro de Villa Crespo, em Buenos Aires, poucos dias depois da vitória de Javier Milei, cruzou os dedos e torceu. “Pensei que ia gastar um valor, mas a feira me saiu quase 30% mais cara”, diz a enfermeira aposentada. “Nós imaginávamos que os preços iam subir depois das eleições, mas não tanto”, diz, desconcertada. 

“Se o dinheiro já não estava dando, agora é que eu já não sei o que pode acontecer”, reflete Patrícia, equilibrando sacolas repletas de carnes, verduras, queijo, mate e itens de higiene. “Sei da escassez de dólares, dos problemas de importação e tudo o mais. Mas uma disparada dessa me impressiona”, completa a argentina, perplexa com o súbito aumento nos preços pós-eleições.

Ela votou em Milei, e apesar do aperto no bolsos tem fé que o novo presidente argentino fará os ajustes necessários para estabilizar a cambaleante economia argentina. “Como é que poderia ficar pior?”.

O dia a dia na Argentina após as eleições

A chegada de Javier Milei ao poder já reflete em inquietações e incertezas, mesmo antes de sua posse, marcada para o domingo 10. Os preços dos produtos básicos, em alta desde o fim das eleições, sinalizam uma preocupante tendência. 

Neste cenário, esperança e a apreensão dividem o clima político na Argentina. Os mais abastados, menos vulneráveis às mudanças de governo, comemoram. Já aos mais pobres, dependentes da assistência estatal, resta fazer as contas para o futuro. 

É o caso de Miguel Ángel, de 38 anos. Há dois vivendo nas ruas, ele expressa sua angústia diante do novo governo: “Com esse presidente, nós que estamos nas ruas vamos sofrer feito uns condenados”.

Uma simples ida ao supermercado reflete o impacto dessa transição. Miguel relata a escalada dos preços:  “Tudo aumentou de uma vez. O refrigerante mesmo eu comprava por 300 pesos, agora está uns 380, 400.  Um pacote de macarrão custava 250”, explica, esperando um gesto de solidariedade dos que entram e saem de um mercado no bairro de Balvanera, no centro portenho.

A Argentina clama pela estabilidade econômica. Mas pode mergulhar em uma instabilidade e incertezas ainda mais dramáticas. Em novembro, um grupo de mais de cem economistas do vários países, incluindo Thomas Piketty e Branko Milanovic, ex-economista-chefe do Banco Mundial, lançou uma carta apontando que as ideias econômicas de Milei “passam longe das complexidades das economias modernas, ignoram as lições das crises históricas e abrem a porta para acentuar desigualdades”.

A OCDE também entrou no jogo para tentar projetar o futuro da Argentina sob Milei. Um informe do grupo sugere que a rápida necessidade de cortar gastos públicos, em meio a tensões sociais, pode desencadear instabilidade política. Isso poderia erodir ainda mais a confiança e atrasar investimentos vitais para a economia do país.

Como os preços subiram além da inflação oficial

Nas semanas seguintes após as eleições, a Argentina enfrentou aumentos de preços que superaram os índices habituais dos últimos anos. Alimentos, bebidas, produtos de origem animal e vegetal, gasolina e outros itens essenciais sofreram altas acima da média, incluindo reajustes de mais de 50% em alguns casos.

Dados da consultoria Eco Go mostram que a inflação entre os dias 21 e 24 de novembro – ou seja, no período imediatamente após as eleições – foi de 8%. É como se quase o dobro da inflação anual do Brasil fosse registrada em menos de uma semana na Argentina. Segundo quase todas as projeções econômicas, a escalada nos preços deve continuar.

Este fenômeno não é apenas consequência da eleição, mas também resulta das complexas estratégias econômicas adotadas pela Argentina, incluindo iniciativas de Sergio Massa, rival de Milei nas urnas e atual ministro da Economia do país.

A maré dos preços é um jogo de expectativas no qual o mercado (produtores e fornecedores, por exemplo) tenta se proteger. Seja como for, são os consumidores que enfrentam as consequências mais diretas dessa dinâmica, lidando com os impactos imediatos nas prateleiras dos supermercados.

Para o economista Samuel Pessôa, chefe do Centro de Crescimento Econômico do FGV IBRE, o pico inflacionário ocorrido depois das eleições tem a ver com o movimento do câmbio na Argentina e resulta, principalmente, de medidas tomadas pelo atual governo, ainda no período eleitoral.

Um dos motivos da angústia da economia argentina, destaca, se deve à necessidade do país em importar bens e serviços, contrastando com suas insuficientes reservas em dólares. “A conta não fecha. Por isso, uma das maneiras de lidar com o problema é controlando a conta de capital [investimentos, empréstimos e recursos externos]. Isso faz com que o país tenha muitos câmbios diferentes”, diz o economista.

Esta escassez de reservas em dólar dificulta as importações, forçando os fornecedores a encontrar alternativas, muitas vezes onerosas para os consumidores, para manter o fluxo de mercadorias.

Recentemente, uma mudança na fórmula que criou o “dólar exportador” – um dos tantos tipos de dólar que existem no país – elevou seu valor em relação ao peso, impactando diretamente nos preços dos produtos. Apesar da crise, autoridades, entidades e comerciantes sustentam que o país não enfrenta risco real de desabastecimento

Durante as eleições, Sergio Massa adotou estratégias para controlar os preços e impulsionar o consumo. Samuel Pessôa relembra que uma das ações de Massa foi beneficiar os exportadores com uma taxa de câmbio mais vantajosa. “Isso estimulou pessoas que tinham produtos como milho e soja guardados, por exemplo, a ‘desovar’ os estoques, aproveitando o câmbio mais favorável, e gerou uma entrada momentânea de divisas e aliviou o câmbio“, explica Pessôa.

No entanto, a fatura desse alívio cambial chegou e os benefícios obtidos com a valorização do câmbio e algum alívio no custo de vida acabaram se revertendo. “Essa pressão inflacionária atual é, em parte, consequência dessa dinâmica”, completa.

Produtos listados no programa “Preços Justos”, criado pelo governo Fernández para atenuar a inflação. Foto: André Lucena/CartaCapital

A inflação elevada também é impulsionada pelo aumento na circulação monetária. Na opinião de Pessôa, as isenções fiscais implementadas por Massa, que abarcaram diversos setores, aumentaram os gastos da população. Um exemplo é o programa de isenção do IVA iniciado em setembro, com término previsto para 31 de dezembro.

Prever a inflação argentina é complexo, mas estima-se que ela continue alta no curto prazo e em 2024. A EcoGo projeta 13% em novembro, enquanto a OCDE prevê 157,1% em 2024, ressaltando a incerteza política como um fator crítico.

Enquanto isso, a população argentina tenta reconciliar os discursos do novo governo com a realidade de suas compras diárias, enfrentando a desvalorização do peso. A economia, central na campanha de Milei, continua sendo o foco.

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