Imprensa europeia demorou a perceber que a imprensa brasileira não era imparcial, diz brasilianista

A francesa Maude Chirio fala a 'CartaCapital' sobre a repercussão e o impacto do artigo do 'Le Monde' sobre a Lava Jato

Apoie Siga-nos no

por Leneide Duarte-Plon, de Paris

« Um juiz considerado ‘parcial’, uma equipe de investigadores com métodos duvidosos, a intervenção dos Estados Unidos e, para terminar, um escândalo retumbante : « Lava Jato », a operação anticorrupção, que sacode o Brasil há sete anos, serviu a interesses diversos menos à democracia ».

O subtítulo da matéria publicada na edição do último fim de semana do Le Monde, o mais prestigioso jornal francês, era eloquente e anunciava o conteúdo da reportagem repleta de revelações. Elas mostram como o juiz Sérgio Moro e os procuradores da Lava Jato trabalharam durante anos para defender a política dos Estados Unidos e os interesses das empresas americanas.

O título Justiça, a armadilha brasileira, já anunciava a bomba que o jornal mais lido nas chancelarias do mundo todo trazia em três páginas de texto e mais uma com um infográfico, além da chamada de primeira página.

O trabalho de investigação primoroso ocupou vários meses do jornalista Nicolas Bourcier e de Gaspard Estrada, diretor-executivo do Observatório Político da América Latina e das Caraíbas no prestigioso Institut d’Études Politiques de Paris (Sciences Po).

Depois de algumas derrapadas graves como o editorial Brésil: Ceci n’est pas un coup d’État (Brasil : Isto não é um golpe de Estado), publicado em 30 de março de 2016, que denunciava uma “retórica duvidosa” utilizada pela presidente Dilma Rousseff e por seu predecessor, o presidente Lula – que qualificavam o impeachment de golpe de Estado – o Le Monde presta um grande serviço à História e à democracia, ao publicar a investigação de precisão cirúrgica, na edição de 11 e 12 de abril deste ano.


No texto, fica demonstrado com detalhes a intervenção dos Estados Unidos na operação Lava Jato, com as consequências nefastas que todos conhecemos: o impeachment da presidente Dilma Rousseff, a prisão de Lula, seu impedimento de concorrer à presidência e a eleição do capitão Jair Bolsonaro.

O texto diz em determinado momento:

“A embaixada americana em Brasília tenta criar uma rede de especialistas locais para defender as posições americanas sem dar a impressão de ‘ser peões’ de Washington, escreve o embaixador americano Clifford Sobel, em telegrama diplomático que os autores da reportagem puderam ler”.

O melhor vem a seguir. Temos a impressão de estar lendo um livro de espionagem no qual um governo estrangeiro faz a cooptação e prepara a formação de um agente duplo:

“Sergio Moro, que colabora ativamente com as autoridades americanas no caso Banestado, é contactado para participar de um programa de encontros financiado pelo Departamento de Estado. Ele aceita. Uma viagem é organizada aos Estados Unidos em 2007, durante a qual  faz uma série de contatos no FBI, no Departamento de Justiça e no Departamento de Estado”.

Gestão caótica da Covid

O BRICS e a política externa independente dos governos do PT incomodavam Washington que, além de tudo, via os interesses de empresas americanas contrariados em diversas partes do mundo pela concorrência das empresas brasileiras de construção civil. Era preciso golpeá-las pois, como se sabe, qualquer que seja o partido do presidente, o lema é “America first”.

O petróleo do pré-sal era importante demais para ficar nas mãos de um governo de esquerda com pretensões a governar o Brasil como um país soberano, deixando de lado o complexo de vira-latas.

Não por acaso, Dilma Rousseff e a Petrobras foram alvo de grampos da NSA (National Security Agency), revelados por Edward Snowden em 2013. Dilma Rousseff e Angela Merkel foram as chefes de Estado mais grampeadas no mundo pela NSA.

Atualmente, com um recorde mundial de mortes diárias pela Covid, o Brasil vem sendo criticado aqui na França pela gestão caótica da pandemia. Os vôos que ligam os dois países foram suspensos a partir de 14 de abril.

Para servir de contraponto às revelações do Le Monde e semear a confusão entre as pessoas menos informadas, o embaixador brasileiro em Paris, Luís Fernando Serra, disse em entrevista ao canal BFMTV que “a falta de leitos para tratar de todos os casos de Covid no Brasil é culpa dos 24 anos de governo de esquerda, que não fez investimentos em saúde”.

a historiadora francesa Maud Chirio, especialista do Brasil e autora de “A política nos quartéis: Revoltas e protestos de oficiais na ditadura militar brasileira”, fala a CartaCapital sobre o assunto.


CartaCapital: Como você viu a matéria e as revelações do Le Monde sobre o envolvimento dos Estados Unidos na Lava Jato e nos acontecimentos posteriores, que levaram ao impeachment e à eleição de Bolsonaro ?

Maud Chirio : Li essa matéria como a tradução da importância que pode ter a imprensa internacional de investigação de qualidade para contribuir a mudar a evolução da narrativa dos últimos anos. Essa imprensa internacional teve, desde 2016, desde o golpe institucional contra a presidente Dilma Rousseff, um papel desigual, dependendo dos países e dos veículos. Fico de certa maneira orgulhosa que um dos principais jornais do meu país tenha assumido esse papel de investigação crítica e espero que seja um momento de divisor de águas para que a imprensa mostre uma atenção crítica com o que está acontecendo no Brasil.

CC: Depois do editorial de 2016, por que o Le Monde resolveu fazer uma investigação profunda e mostrar  a verdadeira face da Lava Jato ?

MC : Acho que durante muito tempo a grande imprensa europeia ficou refém da grande imprensa brasileira sem perceber que ela não fazia uma cobertura jornalística imparcial mas era um dos atores do próprio processo golpista. E isso foi muito difícil de entender por diversas razões. Por uma espécie de solidariedade entre jornalistas, eles talvez não imaginavam que a grande maioria podia se afastar dos padrões democráticos. Talvez, também, por causa de uma posição periférica da América Latina na mídia europeia, que em geral dá pouca atenção e pouca competência jornalística a essa região do mundo, em comparação com os Estados Unidos, com o Oriente Médio  e regiões que têm mais atenção da imprensa.

CC: O que muda no Brasil? O Le Monde é o jornal mais lido nas chancelarias do mundo.

MC: Como você diz, não podemos subestimar o impacto que o olhar de fora e, em particular, o olhar mainstream de fora tem sobre parte de formadores de opinião e da classe política no Brasil. A maneira como a Lava Jato, os processos contra Lula e sua prisão foram vistos de fora influenciou bastante nas posições políticas e decisórias de uma parte dos atores políticos no Brasil. Acho que depois das revelações do Intercept, essa matéria foi uma segunda contribuição muito importante do mundo midiático para que a realidade da Lava Jato seja revelada. Espero que isso impeça que decisões judiciárias ulteriores voltem a relegitimar a Lava Jato no único objetivo de reduzir o espectro do pluralismo democrático e impedir que candidatos progressistas, e em particular o Lula, possam se candidatar. Fiquei bastante impressionada e acho que teve um impacto muito grande e que está apenas começando como um elemento que incita outros jornalistas no Brasil e no exterior a investigar mais o judiciário. Isso pode, talvez, reduzir a possibilidade de o judiciário atuar fora do devido processo legal, fora do Estado de direito no futuro. Mas isso pode ser otimismo meu, não se baseia em um conhecimento dos atores principais em relação ao estrangeiro.

Para proteger e incentivar discussões produtivas, os comentários são exclusivos para assinantes de CartaCapital.

Já é assinante? Faça login
ASSINE CARTACAPITAL Seja assinante! Aproveite conteúdos exclusivos e tenha acesso total ao site.
Os comentários não representam a opinião da revista. A responsabilidade é do autor da mensagem.

0 comentário

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.