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História sufocada
A Rússia de Putin ignora o centenário da morte de Vladimir Lenin
O centenário da morte, no domingo 21, de Vladimir Lenin, um dos mais influentes líderes do século XX, passou praticamente em branco em seu país natal, a Rússia, onde o revolucionário é acusado de depositar uma “bomba-relógio” sob a nação e a Ucrânia que explodiu na última década. Não houve desfiles ou discursos entusiasmados na Praça Vermelha. O motivo óbvio: um dos críticos mais estridentes do líder bolchevique é o presidente Vladimir Putin, enamorado pelo império que os revolucionários comandados por Lenin derrubaram.
Muitas vezes retratado na cultura soviética oficial como uma figura avoenga e acalentadora que propiciou a revolução de 1917, o legado de Lenin tem sido repintado em tons mais escuros, apesar de alguns pedidos para que o assunto seja deixado de lado, tanto retórica quanto corporalmente. “Na minha opinião, o centésimo aniversário da morte de Lenin cria uma oportunidade para tentarmos nos distanciar de uma discussão interminável, apaixonada e sem sentido, sobre o dilema: ele é um anjo celestial ou um anticristo monstruoso, a personificação do Mal terreno absoluto?”, afirmou Vladimir Lukin, senador russo que foi comissário de direitos humanos. “Se a oportunidade será usada é outra questão.”
Putin parece incapaz de qualquer dessas opções. Ele não consegue parar de falar sobre Lenin, tampouco está disposto a enterrar seu corpo, embalsamado na Praça Vermelha. Um terço dos russos acredita que o corpo de Lenin deve ser posto em repouso o mais rápido possível, segundo nova pesquisa da VTsIOM, mas a questão é considerada tão incendiária que o cadáver continuará em exposição pública, talvez, por mais um século. “Acredito que devemos ser muito cautelosos sobre isso, de modo a não adotarmos qualquer medida que venha dividir a nossa sociedade. Precisamos uni-la”, disse Putin a ativistas pró-Kremlin em 2016 sobre a ideia do enterro. Planos sobre a remoção do corpo foram abandonados.
Outrora estrela guia dos movimentos revolucionários internacionais, a influência de Lenin desvaneceu no século desde a sua morte. “Ainda estou indeciso sobre o legado de Lenin e sua herança, no sentido do que ela significa hoje”, disse Christopher Read, professor de História na Universidade Warwick, na Inglaterra, autor de uma biografia do líder revolucionário e também do novo Lenin Lives? (Lenin Está Vivo?), revisão de sua vida e ideias. Por um lado, disse, os chineses e outros partidos comunistas governantes ainda situam sua herança no leninismo. “Mas a ideia de que há um kit de ferramentas leninista que os radicais podem utilizar é provavelmente inaplicável hoje em dia.”
Seu apelo internacional no Ocidente era mais forte diretamente depois da revolução até os acontecimentos de 1956, quando a brutalidade de seu sucessor, Joseph Stalin, foi denunciada pelo então líder do Partido Comunista Soviético, Nikita Kruchev. “O que atraía para o leninismo era basicamente seu anti-imperialismo. A União Soviética, por bem ou por mal, era o ponto de partida mais sólido para qualquer movimento anti-imperialista na época”, disse Read. “Por isso, tantos intelectuais, certamente enganados, acreditavam que, de alguma forma, a Rússia soviética nos anos 1930 era a grande nova civilização.”
A influência de Lenin na política moderna pode ser sentida mais agudamente na China, onde sua visão do Estado-partido liderado por uma vanguarda ideológica tornou-se uma realidade política. Xi Jinping, o líder do Partido Comunista Chinês, estudou teoria marxista e educação ideológica na Universidade Tsinghua, no fim dos anos 1990, quando era uma autoridade graduada na província de Fujian. Quando assumiu o poder, em 2012, logo fez um discurso para autoridades em que as instou a “praticar os valores socialistas centrais”, incluindo o marxismo-leninismo.
Isso não ocorreu na Rússia, onde Lenin foi veementemente acusado e revisto como vilão por Putin. Em discursos que remontam a 2016, o presidente russo culpou o revolucionário por apaziguar os nacionalistas e traçar linhas de falha no sistema soviético, ao criar repúblicas nacionais que mais tarde teriam o direito de se separar da União Soviética. “O que foi isso senão uma bomba-relógio?”, perguntou.
O presidente russo culpa o revolucionário pela existência da Ucrânia
O reconhecimento de Lenin de que ucranianos e russos deveriam viver em Estados diferentes, bem como sua insistência em que a região industrial de Donbass permanecesse na república ucraniana, trouxe a Ucrânia de volta ao grupo depois de declarar a independência em 1918, observou Serhii Plokhy, professor de história na Universidade Harvard. “Mas o preço que ele pagou por isso parece excessivo para os atuais formadores de opinião russos.”
Na Ucrânia, as inúmeras praças em cidades e estátuas com o nome de Lenin antes de 2014 eram vistas como uma relíquia do colonialismo russo, e em 2015 o país lançou uma ampla campanha de “descomunização”, demolindo milhares de monumentos e renomeando dezenas de milhares de ruas e praças, às vezes cidades e aldeias inteiras.
As onipresentes estátuas de Vladimir Lenin foram um alvo específico: mais de 1,3 mil foram removidas até 2016. Quando multidões na cidade de Kharkiv conseguiram derrubar uma delas, a mais alta do mundo, com 8,5 metros, o governo regional teve de antedatar uma ordem para sua remoção, pois acreditou que a multidão não conseguiria derrubar a estátua, mas percebeu que estava errado.
Putin, ao anunciar a decisão mais importante de sua presidência, o lançamento da guerra em grande escala na Ucrânia, mencionou Lenin 11 vezes, enquanto o acusava furiosamente de apaziguar os nacionalistas e de criar a “Ucrânia de Vladimir Lenin”, que inclui terras que a Rússia hoje ocupa, no leste e no sul. “Vocês querem descomunização?”, disse Putin enraivecido em um discurso poucos dias antes de ordenar a invasão. “Muito bem, está ótimo para nós. Mas por que parar no meio do caminho? Estamos prontos para mostrar o que uma verdadeira descomunização significaria para a Ucrânia.”
Mesmo para alguns dos conservadores pró-Kremlin que lutam na Ucrânia, há uma nostalgia de Lenin como uma figura histórica poderosa. “O centenário da morte tem sido abafado porque ele continua extremamente pertinente, porque Lenin está aqui, Lenin está vivo, Lenin está na vanguarda de uma nova reconstrução mundial”, escreveu Zakhar Prilepin, escritor pró-Kremlin e líder paramilitar. “Todo russo pensante orgulha-se porque tivemos Lenin, porque temos Lenin.” •
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
Publicado na edição n° 1295 de CartaCapital, em 31 de janeiro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘História sufocada’
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