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Herói ou traidor?

O legado do líder mercenário Yevgueni Prigozhin depende dos movimentos de Vladimir Putin e do futuro da guerra

Herói ou traidor?
Herói ou traidor?
Prigozhin continua popular entre os ultranacionalistas – Imagem: Natalia Koleskinova/AFP
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Num documentário de 2018, Vladimir Putin responde instantaneamente quando lhe perguntam se há algo que ele não consegue perdoar. “Traição”, diz, sem hesitar. O chefe do grupo mercenário Wagner, Yevgueni Prigozhin, que morreu, possivelmente assassinado, na semana passada a bordo de seu jato particular Embraer, tinha uma opinião parecida. Uma das táticas de seus combatentes para punir os desertores era prender suas cabeças com fita adesiva num bloco de concreto e depois esmagá-las até a morte com uma marreta. O martelo tornou-se seu símbolo.

Durante anos, Prigozhin fez o trabalho sujo do Kremlin e procurou espalhar a influência russa e semear a discórdia entre seus inimigos no mundo. ­Putin elogiou Prigozhin após a morte, chamando-o de “empresário talentoso”, que deu uma “contribuição significativa” na guerra contra a Ucrânia. Mas seu legado talvez não resista à pecha de traidor, palavra usada pelo presidente russo durante a revolta do grupo Wagner em junho.

Prigozhin disse que seu motim teve o objetivo de salvar Putin dos militares, que estariam escondendo verdades sobre o conflito e desviando dinheiro do esforço de guerra. Mas ultrapassou claramente os limites ao criticar a invasão da Ucrânia, dizendo nas redes sociais que “a guerra não foi para desmilitarizar ou desnazificar a Ucrânia. Foi necessária para (que o ministro da Defesa, Sergei Shoigu, recebesse) mais uma estrela”.

Alexander Baunov, pesquisador sênior do Centro Carnegie Rússia Eurásia, escreveu no Wall Street Journal que, a partir do momento em que a revolta de ­Prigozhin foi chamada de traição, ele era um homem marcado para morrer. “Descrever Prigozhin como traidor significava que as consequências eram inevitáveis”, disse ele. “Caso contrário, um sistema construído sobre princípios e práticas informais, em vez de instituições formais, correria o risco de se tornar incontrolável.” Uma fonte próxima do Ministério da Defesa acrescentou que a sobrevivência de Prigozhin poderia ter representado perigos ainda maiores para o Kremlin. “Eles eliminaram o líder de uma potencial oposição militar ou armada no futuro.”

Alguns dos confidentes mais próximos de Putin fizeram avaliações deliberadamente vagas sobre o seu legado. ­Alexei Dyumin, ex-guarda-costas de ­Putin e hoje governador regional, chamou ­Prigozhin de “verdadeiro patriota”. “Lamentamos por todos aqueles que morreram na catástrofe, por todos os combatentes do Wagner que morreram durante (a guerra)”, disse ele. “Podem ser perdoados erros e até covardias, mas nunca traições. Eles não eram traidores.”

Andrei Soldatov, jornalista e especialista nos serviços de segurança russos, diz não acreditar em toda essa linguagem sobre vingança e traição. “Se você olhar toda a situação com mais cuidado, Prigozhin não traiu Putin, ele não foi um verdadeiro traidor porque não foi procurar os ucranianos e a Otan. Ele não era um traidor, era um problema (político).”

Esse problema terminou quando o avião de Prigozhin caiu na quarta-feira 23, concluindo um período complexo ao longo dos últimos meses, enquanto lutava para reforçar suas operações na África, mesmo quando delegações do Ministério da Defesa se espalhavam para abocanhar seus antigos clientes. Parecia que ele poderia ter desafiado Putin e sobrevivido para contar a história. “Achei que Prigozhin e Putin poderiam ter feito um novo acordo e que o mercenário poderia durar algum tempo por ter alguma nova utilidade para Putin”, disse Soldatov. “Ao que parece, Putin só estava demorando para avaliar os danos e cuidar de tudo.”

Se os militares russos sofrerem reveses na Ucrânia, o culto ao comandante do grupo Wagner só aumentará

Na tevê russa, a morte de Prigozhin foi ofuscada pela participação virtual de ­Putin na cúpula dos BRICS na África do Sul e pelos relatórios da guerra na ­Ucrânia, ­observa a jornalista russa Masha ­Borzunova. “Os propagandistas russos estão tentado provar que a morte de ­Prigozhin é benéfica para todos, menos ­Putin”, comenta. “Eles estão discutindo todas as versões possíveis, exceto a mais óbvia.”

Além de distanciar o Kremlin da morte de Prigozhin, também procuraram sua­vizar as promessas do líder russo de vingança rápida após o motim. “O fato de Prigozhin ter sido chamado de ‘traidor’ após a revolta e de Putin ter-lhe prometido um castigo dificilmente é mencionado”, disse Borzunova. “Principalmente, eles estão discutindo suas conquistas durante a guerra. E como a morte dele não é favorável para o governo russo.”

O líder do grupo Wagner continua popular entre um pequeno grupo de nacionalistas e falcões da guerra, e o uso carismático das redes sociais também fez dele uma espécie de herói popular na Rússia. Mas o plano maior de Prigozhin era esperar que o esforço de guerra da ­Rússia na Ucrânia vacilasse novamente, exigindo-lhe que trouxesse seus mercenários para salvar o dia e possivelmente reparar suas relações com Putin.

É uma estratégia que ainda pode reforçar seu legado na morte. “Se a Ucrânia começar a obter ganhos, o mito de ­Prigozhin só aumentará”, avalia Marat Gelman, político da oposição que já foi assessor de ­Putin. “Haverá poderes que mistificarão a personalidade de Prigozhin e o apresentarão como mártir. Outros criarão histórias de que ele ainda está vivo.”

Qual será o legado de Prigozhin? O chefe do Wagner construiu uma das empresas militares privadas mais reconhecidas do mundo, foi pioneiro no uso de fazendas de trolls e de condenados nas forças armadas, e mostrou que era possível desafiar brevemente o presidente russo com seu motim armado e sua “marcha da justiça” em Moscou. Os investigadores dizem que ainda não identificaram o corpo de Prigozhin, mas os pensamentos já se voltaram para seu funeral, que deve ocorrer em São Petersburgo.

Os detalhes mostrarão mais sobre o legado de Prigozhin para a Rússia: será concedida a ele alguma honraria estatal por seu papel na guerra contra a Ucrânia? E quem estará lá para chorar por ele? Dmitry Peskov, porta-voz do ­Kremlin, disse ser “impossível dizer” se Putin compareceria ou não ao funeral, pois a data ainda não foi definida. Mas ele não foi muito encorajador. “A única coisa que posso dizer é que o presidente tem hoje uma agenda de trabalho bastante cheia”, acrescentou. •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1275 de CartaCapital, em 06 de setembro de 2023.

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