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A união da esquerda em torno de Jean-Luc Mélenchon é a maior novidade das eleições

Foto: Nouvelle Union Populaire 2022
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Para muitos analistas, o recente acordo que resultou na união das esquerdas para as eleições legislativas de junho é histórico. O desempenho do bloco vai determinar se ­Emmanuel Macron, reeleito presidente, terá de se curvar a uma agenda mais progressista ou estará livre para aprofundar a política neoliberal. Para Jean-Luc Mélenchon, maestro da negociação que construiu a união de seu partido, La France Insoumise, com as legendas ­gauche, a frente é a realização do sonho de reconstruir o Front Populaire, que governou a França de maio de 1936 a abril 1938, deu início a reformas sociais importantes (férias de 15 dias para os trabalhadores e semana de 40 horas) e combateu o nazismo que começava a devastar a Europa. Com o socialista François Mitterrand, décadas depois, os trabalhadores ganharam a quinta semana de férias remuneradas.

O novo programa da esquerda unida defende a aposentadoria aos 60 anos e não aos 62 atuais ou aos 65, como propõe Macron. Além disso, o grupo prega a revogação da lei que retirou direitos trabalhistas durante o governo de François Hollande, entre outras medidas sociais do programa que contém uma ambiciosa meta de transição ecológica.

Em junho, a França elegerá em dois turnos 577 deputados para um novo mandato e as esquerdas se apresentarão com o nome de Nouvelle Union ­Populaire Écologique e Sociale (Nupes), reunião do partido La France Insoumise, que teve 22% dos votos no primeiro turno da eleição presidencial deste ano, com o Europe Écologie-Les Verts, 4,6% no primeiro turno, o Parti Communiste (2,2%) e o Parti Socialiste (1,7%). Neste ano, os socialistas, que governaram o país com ­Mitterrand e Hollande, tiveram o pior resultado de sua história, com a candidatura da prefeita de Paris, Anne Hidalgo, e foi o último a assinar o acordo da esquerda.

O economista e articulista do Le Monde­ Thomas Piketty intitulou seu mais recente artigo de “Le retour du Front Populaire”, alusão a um dos momentos mais entusiasmantes, embora breve, da história francesa do século XX. Piketty começa o texto a declarar seu apoio incondicional à aliança. “Digamos logo: o acordo feito pelos partidos de esquerda é uma excelente notícia para a democracia francesa e europeia. Os que veem nele o triunfo da radicalidade e do extremismo visivelmente não compreenderam nada das evoluções do capitalismo e dos desafios sociais e ambientais que enfrentamos há várias décadas.”

Uma excelente notícia para a democracia francesa e europeia, define Thomas Piketty

Será preciso aumentar os impostos dos milionários, que multiplicaram suas fortunas na última década, defende ­Piketty, ao apontar os erros econômicos do governo Macron, generoso com os abastados. Os historiadores no futuro não pouparão as críticas ao atual presidente da República, avalia o economista. O articulista destaca, para quem não tenha percebido, o retorno da justiça social e fiscal no programa de Mélenchon e nos objetivos do acordo que os três outros partidos da frente aprovaram. Com um programa comum a ser redigido, eles enfrentarão a política neoliberal de Macron, que prometeu levar em conta os eleitores de esquerda que votaram nele a contragosto, para impedir o neofascismo racista e antieuropeu de chegar à Presidência. “Não sou hegemônico, quero construir uma alternativa positiva, um bloco popular majoritário para enfrentar as lógicas liberais e reacionárias”, declarou Mélenchon, que, segundo o jornal ­Libération, conseguiu o impossível: reunir em torno de seu partido as forças que se criticavam e que o ­ex-primeiro-ministro e ex-socialista ­Manuel Valls dizia serem “irreconciliáveis”. “Tentar apresentar a nova união das esquerdas como antieuropeia é uma manobra grosseira, pois são os mais federalistas de todos”, escreveu Piketty.

As negociações com o PS, dirigido pelo deputado Olivier Faure, foram as mais difíceis, pois parte dos chamados “elefantes” socialistas, figuras tradicionais como Hollande e os ­ex-primeiro-ministros Jean-Marc Ayrault e Bernard ­Cazeneuve, eram contra o acordo com o ­ex-trotskista e majoritário Mélenchon, que deixou o PS em 2008 para fundar o Parti de ­Gauche, à esquerda dos socialistas. Unido ao ­Partido Comunista, Mélenchon disputou a Presidência pela primeira vez em 2012 e uma segunda em 2017, tendo ­obtido 11,1% e 19,5%, respectivamente, até chegar aos 22% deste ano.

Outro nome próximo de Hollande, seu ex-primeiro-ministro Vals, jogou-se nos braços de Macron e tentará uma cadeira de deputado pelo partido macronista, antes denominado La République en ­Marche e rebatizado Renaissance. Logo depois da assinatura do acordo dos socialistas com Mélenchon, aprovado pela maioria em assembleia, Cazeneuve declarou publicamente que iria se desfiliar do PS. Em compensação, duas políticas de peso na legenda aprovaram a aliança: ­Ségolène Royal, candidata à Presidência pelo PS em 2007 e que fez um apelo ao voto útil em ­Mélenchon, e Martine Aubry, prefeita de Lille e candidata à indicação pelo PS na eleição presidencial de 2012. Naquela disputa, ela qualificou Hollande de gauche molle (esquerda mole, sem tônus).

A Nouvelle Union Populaire Écologique e Sociale apresentará candidatos comuns em mais de 500 circunscrições entre as 577 que elegem os deputados da Assemblée Nationale. Se obtiver maioria, será a terceira vez na Quinta República, inaugurada por De Gaulle em 1958, que um presidente governará em coabitação com um primeiro-ministro de uma coalizão majoritária de oposição. A última vez foi no primeiro mandato de Jacques Chirac, com o primeiro-ministro Lionel Jospin, do então majoritário Partido Socialista.

Depois do acordo entre os socialistas e a nova frente de esquerda, o partido de Macron tentava atrair para sua maioria os políticos descontentes do PS. Começava a corrida para formar a maioria parlamentar e governar, ainda que o primeiro-ministro do segundo mandato não tenha sido anunciado. Na segunda-feira 9, Macron disse em Berlim já tê-lo escolhido, sem, no entanto, revelar seu nome. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1208 DE CARTACAPITAL, EM 18 DE MAIO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Frente ampla”

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Para muitos analistas, o recente acordo que resultou na união das esquerdas para as eleições legislativas de junho é histórico. O desempenho do bloco vai determinar se ­Emmanuel Macron, reeleito presidente, terá de se curvar a uma agenda mais progressista ou estará livre para aprofundar a política neoliberal. Para Jean-Luc Mélenchon, maestro da negociação que construiu a união de seu partido, La France Insoumise, com as legendas ­gauche, a frente é a realização do sonho de reconstruir o Front Populaire, que governou a França de maio de 1936 a abril 1938, deu início a reformas sociais importantes (férias de 15 dias para os trabalhadores e semana de 40 horas) e combateu o nazismo que começava a devastar a Europa. Com o socialista François Mitterrand, décadas depois, os trabalhadores ganharam a quinta semana de férias remuneradas.

O novo programa da esquerda unida defende a aposentadoria aos 60 anos e não aos 62 atuais ou aos 65, como propõe Macron. Além disso, o grupo prega a revogação da lei que retirou direitos trabalhistas durante o governo de François Hollande, entre outras medidas sociais do programa que contém uma ambiciosa meta de transição ecológica.

Em junho, a França elegerá em dois turnos 577 deputados para um novo mandato e as esquerdas se apresentarão com o nome de Nouvelle Union ­Populaire Écologique e Sociale (Nupes), reunião do partido La France Insoumise, que teve 22% dos votos no primeiro turno da eleição presidencial deste ano, com o Europe Écologie-Les Verts, 4,6% no primeiro turno, o Parti Communiste (2,2%) e o Parti Socialiste (1,7%). Neste ano, os socialistas, que governaram o país com ­Mitterrand e Hollande, tiveram o pior resultado de sua história, com a candidatura da prefeita de Paris, Anne Hidalgo, e foi o último a assinar o acordo da esquerda.

O economista e articulista do Le Monde­ Thomas Piketty intitulou seu mais recente artigo de “Le retour du Front Populaire”, alusão a um dos momentos mais entusiasmantes, embora breve, da história francesa do século XX. Piketty começa o texto a declarar seu apoio incondicional à aliança. “Digamos logo: o acordo feito pelos partidos de esquerda é uma excelente notícia para a democracia francesa e europeia. Os que veem nele o triunfo da radicalidade e do extremismo visivelmente não compreenderam nada das evoluções do capitalismo e dos desafios sociais e ambientais que enfrentamos há várias décadas.”

Uma excelente notícia para a democracia francesa e europeia, define Thomas Piketty

Será preciso aumentar os impostos dos milionários, que multiplicaram suas fortunas na última década, defende ­Piketty, ao apontar os erros econômicos do governo Macron, generoso com os abastados. Os historiadores no futuro não pouparão as críticas ao atual presidente da República, avalia o economista. O articulista destaca, para quem não tenha percebido, o retorno da justiça social e fiscal no programa de Mélenchon e nos objetivos do acordo que os três outros partidos da frente aprovaram. Com um programa comum a ser redigido, eles enfrentarão a política neoliberal de Macron, que prometeu levar em conta os eleitores de esquerda que votaram nele a contragosto, para impedir o neofascismo racista e antieuropeu de chegar à Presidência. “Não sou hegemônico, quero construir uma alternativa positiva, um bloco popular majoritário para enfrentar as lógicas liberais e reacionárias”, declarou Mélenchon, que, segundo o jornal ­Libération, conseguiu o impossível: reunir em torno de seu partido as forças que se criticavam e que o ­ex-primeiro-ministro e ex-socialista ­Manuel Valls dizia serem “irreconciliáveis”. “Tentar apresentar a nova união das esquerdas como antieuropeia é uma manobra grosseira, pois são os mais federalistas de todos”, escreveu Piketty.

As negociações com o PS, dirigido pelo deputado Olivier Faure, foram as mais difíceis, pois parte dos chamados “elefantes” socialistas, figuras tradicionais como Hollande e os ­ex-primeiro-ministros Jean-Marc Ayrault e Bernard ­Cazeneuve, eram contra o acordo com o ­ex-trotskista e majoritário Mélenchon, que deixou o PS em 2008 para fundar o Parti de ­Gauche, à esquerda dos socialistas. Unido ao ­Partido Comunista, Mélenchon disputou a Presidência pela primeira vez em 2012 e uma segunda em 2017, tendo ­obtido 11,1% e 19,5%, respectivamente, até chegar aos 22% deste ano.

Outro nome próximo de Hollande, seu ex-primeiro-ministro Vals, jogou-se nos braços de Macron e tentará uma cadeira de deputado pelo partido macronista, antes denominado La République en ­Marche e rebatizado Renaissance. Logo depois da assinatura do acordo dos socialistas com Mélenchon, aprovado pela maioria em assembleia, Cazeneuve declarou publicamente que iria se desfiliar do PS. Em compensação, duas políticas de peso na legenda aprovaram a aliança: ­Ségolène Royal, candidata à Presidência pelo PS em 2007 e que fez um apelo ao voto útil em ­Mélenchon, e Martine Aubry, prefeita de Lille e candidata à indicação pelo PS na eleição presidencial de 2012. Naquela disputa, ela qualificou Hollande de gauche molle (esquerda mole, sem tônus).

A Nouvelle Union Populaire Écologique e Sociale apresentará candidatos comuns em mais de 500 circunscrições entre as 577 que elegem os deputados da Assemblée Nationale. Se obtiver maioria, será a terceira vez na Quinta República, inaugurada por De Gaulle em 1958, que um presidente governará em coabitação com um primeiro-ministro de uma coalizão majoritária de oposição. A última vez foi no primeiro mandato de Jacques Chirac, com o primeiro-ministro Lionel Jospin, do então majoritário Partido Socialista.

Depois do acordo entre os socialistas e a nova frente de esquerda, o partido de Macron tentava atrair para sua maioria os políticos descontentes do PS. Começava a corrida para formar a maioria parlamentar e governar, ainda que o primeiro-ministro do segundo mandato não tenha sido anunciado. Na segunda-feira 9, Macron disse em Berlim já tê-lo escolhido, sem, no entanto, revelar seu nome. •

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