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Fábricas de fraude online são movidas com trabalho escravo

Em Mianmar, jovens esperançosos são atraídos a centrais especializadas em golpes com criptomoedas a serviço de redes criminosas globais, onde trabalham sob ameaças e torturas

KK Park, apenas uma entre pelo menos dez fábricas de golpes online na fronteira Mianmar-Tailândia Foto: Stefan Czimmek/DW
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Aaron mal podia acreditar na própria sorte: uma companhia de tecnologia da Tailândia lhe oferecera o emprego de seus sonhos – salário alto, benefícios generosos, uma via para escapar de um futuro desolador no sul da África. “Eu torcia para ir trabalhar em outro continente, e um dia me contataram. Eu achava que tudo era legítimo – até que cheguei a Bangcoc.”

A Organização das Nações Unidas calcula que mais de 100 mil indivíduos estão confinados nos centros de fraude online de Mianmar, num regime praticamente de escravidão. A equipe investigativa da DW encontrou-se com diversos sobreviventes de uma dessas “fábricas”, o KK Park, que descreveram vigilância rigorosa, tortura e até assassinatos.

No aeroporto, Aaron teve uma recepção calorosa e foi convidado a entrar num carro, junto com dois outros jovens da África Oriental. “Achávamos que iríamos para um hotel que fica talvez a uns dez minutos do aeroporto. Mas o motorista tomou outra direção.”

Depois de quase oito horas de viagem, o grupo chegou à cidade fronteiriça de Mae Sot, no norte tailandês, onde foi transportado através do rio Moei até o estado de Kayin, região de Mianmar devastada por uma guerra pela independência. “Tinha gente com armas. Eles disseram que era para entrarmos no barco. E nós atravessamos”, relata Aaron.

Dali, ele e seus companheiros foram levados para o KK Park, uma central onde milhares são forçados a ações criminosas, enganando internautas dos Estados Unidos, Europa e China. Imagens de satélite mostram que o complexo semelhante a um presídio foi construído em 2020 e que desde então sua área quadruplicou.

Fotos de satélite da fábrica de golpes online KK Park, na fronteira Mianmar-Tailândia, em 2020 e 2024
Imagens de satélite mostram como área do KK Park quadruplicou entre 2020 (foto à esq.) e 2024Foto: Maxar Technologies provided by European Space Imaging

“Abate de porcos” e maus tratos sistemáticos

“A gente trabalhava 17 horas por dia, nada de reclamações, sem feriados, sem descanso”, conta o jovem Lucas, da África Oriental, que foi mantido à força 12 meses na central de fraudes online. “E se a gente dizia que queria ir embora, eles ameaçam que iam vender a gente – ou matar.”

Chegando ao KK Park, Aaron, Lucas e os demais receberam instruções sobre como praticar os golpes. Sua tarefa era convencer os “clientes” – como são denominadas internamente as vítimas – a investirem em criptomoedas. Estes pensavam ter depositado suas economias em investimentos lucrativos, mas ao invés disso o dinheiro entrava numa conta controlada pelos criminosos. Assim que se alcançava uma determinada soma, as contas eram zeradas.

Esse tipo de golpe online é apelidado pig butchering (abate de porcos): os trapaceiros engordam suas vítimas e em seguida as levam para o matadouro. Os manuais distribuídos à chegada no centro descreviam em detalhes como estabelecer confiança e se aproveitar dos pontos fracos dos alvos. Por exemplo: “Seja engraçado. Os clientes devem se apaixonar por você ao ponto de esquecer tudo.”

Havia metas semanais: uma soma determinada que os “agentes de venda” à revelia deviam arrecadar ou um número de “clientes” para entrar em contato. Quem não alcançava essas metas, era punido.

“Quem até o meio-dia não conseguisse nenhum novo cliente, ficava sem almoço. Se alguém reparasse que deixou de responder a um chamado, você era espancado, ou forçado a ficar horas de pé”, conta Lucas. Vídeos e os relatos de prisioneiros anteriores da fábrica de fraudes confirmam torturas psíquicas e físicas sistemáticas.

Soldados da guarda fronteiriça de Mianmar
Tropas de guarda fronteiriça de Mianmar cuidam da segurança do KK ParkFoto: Ko Nitar

Conexões com a máfia internacional chinesa

Confrontados com imagens exclusivas tiradas do interior do complexo, todos os entrevistados reconheceram os crachás nos uniformes dos guardas: trata-se das insígnias da Força de Guarda de Fronteira, um grupo de ex-rebeldes que deixou de combater a junta militar birmanesa uma década atrás, em troca do controle total sobre seus territórios. Os soldados policiam o KK Park, mas os chefes da operação são chineses, de acordo com diversas fontes.

A trilha de pagamentos de diversas vítimas de fraude leva até as carteiras de criptomoedas usadas pelo KK Park para coletar as economias dos defraudados. De lá, o dinheiro é distribuído por outras carteiras que funcionam como contas digitais para armazenar criptos.

Uma delas foi aberta por Wang Yi Cheng, um empresário chinês residente na Tailândia. Ele recebeu dezenas de milhares de dólares em criptomoedas de carteiras usadas pelo KK Park, e integra uma rede maior, de empresários chineses no exterior, que inclui um notório chefão da máfia chinesa.

No período em que recebia transferências diretas de carteiras geridas pela fábrica de fraudes tailandesa, Wang era vice-presidente da Thai-Asia Economic Exchange Association, uma associação sediada em Bangcoc que promove relações entre a Tailândia e a China.

A Thai-Asia partilha seu edifício-sede com o Overseas Hongmen Culture Exchange Center, que em 2023 foi objeto de uma batida policial, juntamente com outros centros da Hogmen, por operar ilegalmente e servir como fachada para o crime organizado chinês.

Empresário Wan Kuok Koi, ex-chefão do crime organizado de Macau, em 1999
Empresário Wan Kuok Koi, ex-chefão do crime organizado de Macau, em 1999Foto: AFP/dpa/picture-alliance

A serviço da Nova Rota da Seda da China?

Essas organizações têm conexões estreitas com Wan Kuok Koi, aliás “Broken Tooth”. Ex-líder da tríade 14K, depois de passar mais de dez anos na prisão por atividades criminosas em Macau, em 2018 ele fundou a World Hongmen History and Culture Association. Nesse ínterim ela foi submetida a sanções pelos Estados Unidos, devido a seu envolvimento com o crime organizado.

Jason Tower, especialista em crime organizado do americano Institute for Peace, menciona que Wan Kuok Koi gosta de repetir que costumava lutar pelos cartéis, mas agora luta pelo Partido Comunista da China.

De fato, sua organização Hongmen também promove a ambiciosa Iniciativa do Cinturão e Rota (BRI, na sigla em inglês), um projeto de infraestrutura trilionário, também conhecido como Um Cinturão, Uma Rota ou Nova Rota da Seda, visando integrar a China ainda mais à economia global.

O terreno em que foi construído o KK Park é uma área-alvo dos investimentos da China na BRI: relatórios do governo saudavam projetos de construção em suas proximidades, embora mais tarde Pequim tenha se distanciado, devido a alegações de fraude em ampla escala.

O complexo em si não é mencionado nos comunicados oficiais da China, nem foi palco de cerimônias pioneiras, como as realizadas em outros projetos de construção na área. Em vez disso, o KK Park foi construído sob medida para a aplicação de golpes online. Soldados armados vigiam todas as entradas, e há câmeras de vigilância por toda parte.

De volta a casa: o fim do pesadelo

As relações de poder nebulosas na região de conflito de Kayin, na fronteira birmanesa, proporcionam solo fértil a atividades criminosas. O KK Park é apenas uma de pelo menos dez fábricas de golpes online da área.

Suas operações ilícitas remontam a uma complexa rede de firmas e associações usadas por criminosos para legitimar seus crimes e “lavar” milhões em capital originário de fraudes. Suas operações estão se expandindo continuamente do Sudeste da Ásia para a África, Europa e América do Norte.

“Estamos realmente vendo que essas redes criminosas se tornam cada vez mais poderosas, mais influentes, e mais ramificadas em países de todo o mundo”, comenta Tower. “E os esforços de aplicar a lei só estão tocando a ponta do iceberg.”

Aaron e Lucas tiveram sorte. Depois de o salário lhes ser negado diversas vezes, eles e outros prisioneiros se recusaram a continuar trabalhando, e receberam ordem de arrumar seus pertences. “Escutei eles dizendo que iam nos vender para uma outra organização”, recorda Lucas.

Os jovens africanos reagiram rápido e conseguiram contatar o ativista australiano Judah Tana, conhecido por auxiliar refugiados na fronteira Mianmar-Tailândia. E assim Aaron e Lucas escaparam, escondidos no banco de trás de seu jipe. Algumas semanas depois, ambos puderam retornar a seu país de origem: seu pesadelo de tráfico humano e escravidão chegava ao fim.

A DW alterou o nome das vítimas do KK Park por razões de segurança.

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