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Recep Erdogan conquista outro mandato de cinco anos e será o dirigente mais longevo desde Mustafa Atatürk

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Suor. Erdogan venceu Kiliçdaroğlu no segundo turno por 52% a 48%. No discurso da vitória, ignorou o adversário e atacou a comunidade LGBT+ – Imagem: Presidência da Turquia e Redes sociais
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A máquina venceu a esperança? Na mais acirrada eleição em duas décadas de poder, Recep Erdogan obteve da maioria dos eleitores o direito de governar a Turquia por mais cinco anos, ao menos. O presidente turco, descrito pelos opositores como autocrata e acusado durante a campanha de abuso de poder econômico e de intimidação da mídia, atingiu 52% dos votos válidos no segundo turno, realizado no domingo 28, contra 48% de Kemal Kiliçdaroğlu, funcionário público que logrou formar uma inédita e ampla coligação de partidos de centro-direita, centro-esquerda e dissidentes e se tornou o primeiro candidato a, de fato, extrair algum suor da testa do onipresente Erdogan. “Foi a eleição mais injusta dos últimos anos”, limitou-se a dizer Kiliçdaroğlu no fim da noite do domingo, ao citar observadores internacionais que enxergaram “um campo de jogo desigual” por conta do viés governista dos meios de comunicação e dos alegados limites à liberdade de expressão. “Continuaremos na vanguarda desta luta até que a verdadeira democracia chegue.”

Nem tudo se resume, porém, ao caráter autocrático da administração, ao uso da máquina pública, a medidas oportunistas, entre elas a redução do preço da eletricidade, ou ao suposto apelo populista do vencedor, como declarou a The ­Guardian Ziya Meral, do think tank Royal United Services Institute. “Se alguém vê o que se passa na Turquia simplesmente como manipulação do Estado, ignora o amplo apoio social a Erdogan”, afirmou. “Nacionalistas, islâmicos, conservadores religiosos e aqueles que o veem como a figura de confiança que pode mudar as coisas tendiam a apoiá-lo confortavelmente. A coalizão de Kiliçdaroğlu só estava realmente unida por querer derrubar Erdogan.” Fiel à base islâmica e conservadora que lhe concedeu mais meia década de poder, o atual presidente dedicou breves palavras ao adversário e preferiu, no discurso de vitória, mirar na comunidade LGBT+, “gente perversa”, segundo ele. “Em nossa cultura, a família é sagrada”, discursou, para delírio dos apoiadores. “Ninguém pode interferir. Vamos estrangular qualquer um que se atreva a tocá-la.”

Foi a mais acirrada disputa das últimas duas décadas

Os temas morais, a segurança e o reconhecimento da projeção internacional de Erdogan, agora o mais longevo dirigente desde Mustafa Kemal Atatürk, fundador da República há um século, superaram, no fim das contas, as dificuldades econômicas decorrentes da pandemia e da subsequente invasão da Ucrânia. A Turquia tem a segunda maior taxa de juros nominais do planeta, 8,5% ao ano, ­porcentual mantido pelo Banco Central do país no início de maio. Só fica atrás do Brasil e seus 13,75% anuais, com uma nada desprezível diferença: na nação que serve de ponte entre o Ocidente e o Oriente, a inflação beira os 44% e não 5%. “Resolver os problemas causados pelos aumentos de preços é o tema mais urgente”, declarou Erdogan. “Não é difícil para nós. Provamos isso durante meu tempo como primeiro-ministro”, em referência ao cargo que exerceu por 11 anos, antes de ser eleito presidente pela primeira vez, em 2014.

É impossível entender o acúmulo de poder de Erdogan e as consequências para a democracia turca sem relembrar o frustrado golpe de Estado de julho de 2016. O governo acusa o clérigo Fethullah Gulen, autoexilado nos Estados Unidos desde 1999, de comandar a quartelada e, desde então, solicita a Washington a extradição do líder religioso. A resposta de Erdogan foi enérgica. Cerca de 40 mil suspeitos foram presos e mais de 120 mil funcionários públicos acabaram demitidos sumariamente ou afastados de suas funções. Seguiu-se uma profunda reforma das Forças Armadas e do Judiciário, enquanto um referendo em 2017, ainda sob os efeitos da sedição, aprovou a mudança de regime político, do parlamentarismo para o presidencialismo. Uma das principais promessas de campanha de Kiliçdaroğlu era, justamente, reinstalar o sistema parlamentar e criar “pesos e contrapesos”, de forma a reduzir o poder excessivo da Presidência da República, ampliado pelo adversário nos últimos seis anos. Em 2018, nas primeiras eleições sob o novo regime, Erdogan venceu no primeiro turno, com 52,38% dos votos.

Ex-aliado, do tipo “unha-e-carne”, ­Gulen tornou-se o inimigo número 1 de Erdogan. O clérigo nega envolvimento com a tentativa de golpe, mas sua extradição e de aliados curdos, considerados “terroristas” pelo governo, refugiados na Europa é um dos pontos de atrito da política externa do presidente reeleito. Associada à Organização do Tratado do Atlântico Norte, a Turquia dificulta a adesão da Finlândia e da Suécia, países que decidiram abandonar a neutralidade e juntar-se à aliança militar após a invasão russa na Ucrânia. Ancara acusa os vizinhos europeus de abrigarem lideranças curdas acusadas de participação na quartelada de 2016. Durante a campanha, Erdogan prometeu aprovar a adesão finlandesa, mas manteve o veto aos suecos. “Não estamos prontos para a Suécia agora.”

Não por outro motivo, as potências envolvidas na guerra da Ucrânia apressaram-se em cumprimentar o vencedor. O resultado, comentou o presidente russo, Vladimir Putin, foi uma “evidência clara do apoio do povo turco” aos esforços de Erdogan para “fortalecer a soberania do Estado e buscar uma política externa independente”. O norte-americano Joe Biden, por sua vez, parabenizou o mandatário turco e disse esperar que os dois trabalhem “como aliados da Otan em questões bilaterais e desafios globais compartilhados”. No atual estágio do conflito, ser o portal entre dois mundos pode dar uma vantagem à Turquia. Ou provocar uma dor de cabeça. •

Publicado na edição n° 1262 de CartaCapital, em 07 de junho de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Eternamente’

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