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E agora, Javier?

Eleito com margem consistente de votos, Milei enfrentará três grandes desafios

Laranja? Sem um partido forte e com poucas cadeiras no Parlamento, Milei depende de Macri e Patricia Bullrich para tentar sobreviver – Imagem: Redes sociais
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Pela terceira vez seguida, as urnas argentinas surpreenderam. De um cenário acirrado e disputado na margem de erro indicada pelas pesquisas uma semana antes do pleito, o que se viu como resultado eleitoral foi uma vitória sólida de Javier Milei, somando uma vantagem de 3 milhões de votos em relação ao seu adversário e alcançando taxas superiores a 70% dos válidos em duas grandes províncias, Córdoba e Mendoza.

Tida como fiel da balança, a província de Buenos Aires não teve fôlego para sustentar a disputa em favor do candidato governista e atual ministro da Economia, Sergio Massa. A Argentina tem uma classe trabalhadora fiel ao peronismo desde a metade dos anos 1940, e é a província de Buenos Aires que concentra esse eleitorado. Por isso, a região era a esperança de Massa para compensar seu desempenho mais fraco nas províncias do meio. Observando-se o mapa de votação, o que se vê, no entanto, é a vitória peronista nesta área por pouco mais de 100 mil votos, margem insuficiente para a alavancagem nacional de que Massa precisava.

No país, Milei recebeu mais de 55% dos votos. Com isso, o resultado da eleição presidencial argentina expressa uma tendência internacional de fortalecimento do populismo de direita ou de extrema-direita pelo mundo. O desencantamento da população de diversos países com o chamado sistema político, que não consegue de fato colocar freio ao neoliberalismo e à degradação das condições de trabalho, tem como resultado o fim de uma certa moderação que existiu durante todo o período do pós-Guerra em relação a propostas radicais (especialmente aquelas do campo de extrema-direita). ­Milei é o mais recente espécime desse grupo, que conta ainda com Donald Trump nos EUA, Rodrigo Duterte nas Filipinas, e Jair Bolsonaro no Brasil.

Lembrete: Mauricio Macri foi o único não peronista em 40 anos a concluir o mandato

Neste conjunto, podemos distinguir Milei como o mais radical e também aquele com a menor capacidade de governar. Se Trump tinha o Partido Republicano e se Bolsonaro teve uma tecnoburocracia militar, Milei encontra-se completamente isolado, seja de grupos políticos com capacidade de governar, seja em sua capacidade de cooptar o Congresso ou o sistema político argentino, no qual a União Cívica Radical vai constituir o principal grupo de oposição ao seu governo.

O eleito vai enfrentar, a partir de 10 de dezembro, quando toma posse como presidente, três grandes desafios para conseguir estabilizar minimamente a governabilidade. O primeiro deles está ligado ao cenário econômico, cujas metas lançadas durante a campanha dificilmente terá capacidade de cumprir, como é o caso da dolarização da economia. Diferentemente de pequenos países que dolarizaram seus sistemas, o tamanho da economia argentina exige uma boa vontade por parte dos Estados Unidos que Milei até o momento não tem condições de alcançar, além de muitas outras situações que uma medida como essa exigiria.

O que podemos esperar de Milei para os próximos meses é um superchoque, talvez algo no estilo do que fez Fernando Collor no Brasil nos anos 1990. Com uma política de ajuste radical, Milei já anunciou privatizações e paralisação das obras públicas e alerta de que os próximos seis meses serão muito difíceis para a população argentina. Por difíceis pode-se entender, inclusive, um aumento explosivo nos preços, contidos até agora por acordos feitos pelo presidente Alberto Fernández, mas que, diante da promessa de liberalização de Milei, podem chegar a 50% nas gôndolas dos supermercados a partir da posse. Isso em uma economia que já conta com uma das inflações mais altas do mundo.

Vale lembrar: Mauricio Macri foi o único presidente não peronista que conseguiu terminar seu mandato ao longo de 40 anos de democracia, celebrados agora. E foi exatamente a economia que encurtou o mandato dos dois outros governantes: Raúl Alfonsín deixou o comando do país antes do prazo, devido a uma crise hiperinflacionária, e Fernando de la Rúa renunciou diante da chamada crise do corralito.

O segundo desafio de Milei é o de mostrar para o sistema político argentino que ele tem uma proposta viável para a estabilização daquelas políticas públicas que ainda são importantes para a população, sobretudo para a de baixa renda, caso da educação pública e da saúde. Esses pontos não apareceram durante a campanha ou no discurso de posse. Como sinalizado, as dificuldades que Milei terá para negociar suas propostas com o Congresso são claras. La ­Libertad ­Avanza, partido de Milei, não tem o suporte legislativo necessário para governar, nem quadros que sustentem essa articulação. Além disso, os dois campos que perderam a disputa, o peronismo e o radicalismo, ainda lambem as feridas da derrota e não apresentam interlocutores claros com quem se possa negociar.

O terceiro desafio é conseguir estabelecer algum tipo de relação em uma região que será fortemente hostil, como foi possível ver nos comunicados endereçados ao recém-eleito pelos governos brasileiro, chileno e colombiano. Com ­Milei, a Argentina dá mais uma vez um salto no escuro, econômica e politicamente. É muito difícil saber as consequências. Mas, certamente, Milei vai produzir mais instabilidade em um país que precisa, desesperadamente, de estabilidade. •


O Observatório das Eleições na Argentina é um projeto internacional do Instituto da Democracia, sediado na UFMG e coordenado por Leonardo Avritzer. Envolve uma equipe de pesquisadores de diversas instituições e universidades, no Brasil e na Argentina, e tem como objetivo central acompanhar as eleições presidenciais no país vizinho.

Publicado na edição n° 1287 de CartaCapital, em 29 de novembro de 2023.

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