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Como a Europa e os Estados Unidos se valem de países pobres para “reacomodar” os indesejados

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A deportação em massa de migrantes está normalizada – Imagem: Yassine Gaidi/Anadolu Agency/AFP
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Imagine que a Grã-Bretanha assine um tratado com a França pelo qual aceita receber seus migrantes indesejados em troca de pagamento em dinheiro. Que a França proponha o envio de advogados à Grã-Bretanha para garantir que os tribunais britânicos tratem os deportados adequadamente. E que a Assembleia Nacional francesa aprove uma lei que declare a Grã-Bretanha um país seguro para seus migrantes expulsos.

Não é preciso imaginar tal roteiro. Está em curso, exceto que, na história real, a Grã-Bretanha desempenha o papel da França e Ruanda, o do Reino Unido. E aí está a ironia: a Grã-Bretanha, tal como outras nações avançadas, insiste que o afluxo excessivo de migrantes e requerentes de asilo ameaça sua soberania e enfraquece seu controle das fronteiras. A solução é desvalorizar a soberania e a integridade de uma nação mais fraca.

Ruanda está entre os países menos desenvolvidos do mundo. O PIB per capita da Grã-Bretanha é quase 50 vezes maior. Em proporção à sua população, Ruanda acolhe três vezes mais refugiados do que o Reino Unido. A Grã-Bretanha não assinou seu acordo de deportação, apesar de Ruanda ser muito mais pobre, mas as coisas são assim. A indigência de ­Ruanda permite à Grã-Bretanha utilizar seu peso econômico para despejar lá os considerados indesejáveis.

A Grã-Bretanha não está sozinha. A União Europeia paga milhões de euros a ditadores e chefes guerreiros no Norte, no Sahel e no Chifre da África para atuarem como polícia de imigração, na caça e detenção de potenciais migrantes para o continente europeu. Para conseguir isso, a UE tem destruído a soberania das nações africanas, ao distorcer as economias locais e minar a democracia. As tropas e a polícia de fronteiras dos Estados Unidos estão estacionadas em lugares tão distantes quanto o Quênia, o Cazaquistão e as Filipinas, na tentativa de conter a potencial migração para a “América”. A Austrália tem utilizado as ilhas de Manus e Nauru como locais de descarte de requerentes de asilo.

Apesar de toda a histeria, o número de migrantes a pedir asilo na Grã-Bretanha foi menor no ano passado do que duas décadas antes. O que mudou foi a visibilidade daqueles sem documentos, porque a maioria chega agora em pequenos barcos. Por quê? Porque outras rotas foram fechadas. O maior grupo a atravessar o Canal da Mancha é composto por afegãos, fugitivos dos talibãs e abandonados pelo Reino Unido.

A verdadeira questão não reside nos números volumosos, mas na falta de vias legais para solicitar asilo e na incapacidade­ de processar adequadamente os pedidos. Durante a última década, o número de pedidos de asilo em atraso aumentou cerca de quatro vezes mais rápido do que o número de pedidos recentes. A crise é obra do próprio governo.

Nesse contexto, o esquema de deportação para Ruanda é, para aplicar uma descrição supostamente usada pelo novo ministro do Interior britânico, ­James Cleverly, “uma merda”. É uma descrição particularmente adequada da última versão do plano, o projeto de lei sobre Segurança de Ruanda.

A Grã-Bretanha reforça o programa de envio de migrantes a Ruanda

A nova lei declara que Ruanda é um país seguro porque… bem, porque é o que diz. Na quarta-feira 6, a ministra britânica das Mulheres e da Igualdade, Kemi Badenoch, disse ao Parlamento que “permitir a autoidentificação… não é política do governo”. Exceto, parece, quando se trata de insistir na solidez de Ruanda para deportar requerentes de asilo. Então, o governo não só permite a autoidentificação como também proíbe os tribunais e funcionários do governo de contestarem essa certificação, apesar de todas as provas em contrário. A soberania parlamentar pode ser fundamental, mas nem o Parlamento pode apagar a realidade.

Os ministros insistem que precisamos de uma lei tão iliberal, irracional e imoral capaz de funcionar como um “dissuasor” a futuros requerentes de asilo. Existem, no entanto, inúmeras provas de que as políticas de dissuasão raramente dissuadem. Aqueles que desafiaram a morte e o cativeiro, suportaram montanhas e desertos, confrontaram senhores da guerra e milícias e enfrentaram o Canal da Mancha num pequeno barco – será que realmente imaginamos que diriam a si próprios: “Não vamos começar esta viagem porque James Cleverly pode nos mandar para Ruanda”?

O objetivo da lei de Ruanda não é ser eficaz, mas performativa. É também um exercício de propaganda, meio de desviar a culpa pelos fracassos da política social. Isto ficou particularmente visível no debate recente sobre a migração legal. Em resposta à controvérsia sobre o enorme aumento da migração legal líquida, ­Cleverly apresentou um pacote de medidas, incluindo o aumento do limite de renda de um trabalhador qualificado para 38,7 mil libras (232 mil reais), para “impedir que a imigração diminua os salários dos trabalhadores britânicos”. Mas isentou desta regra qualquer um com visto de saúde e assistência social, para que a Grã-Bretanha possa “continuar trazendo os profissionais de saúde dos quais nosso setor de cuidados e o Instituto Nacional de Saúde dependem”.

Isso entrega o jogo. Se o governo quisesse reduzir o número de trabalhadores estrangeiros, poderia facilmente fazê-lo por meio dos gastos com assistência social para ajudar a aumentar salários escandalosamente baixos. Isso Londres se recusa a fazer. O governo mina os padrões de vida dos trabalhadores britânicos – e depois tem a audácia de atribuir a culpa aos imigrantes.

Há um debate importante a ser travado sobre os níveis de migração líquida. Mas esse debate não deve se tornar um mecanismo para apontar os imigrantes pelos fracassos do governo.

A característica mais deprimente do debate sobre Ruanda é o grau em que a ideia da deportação em massa de requerentes de asilo se tornou normalizada. A controvérsia foi menos sobre o escândalo moral que é a política para Ruanda do que sobre se deveria ser ainda mais dura. A lógica da formulação de políticas performativas é a necessidade de reforçar continuamente a retórica. •


Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves.

Publicado na edição n° 1290 de CartaCapital, em 20 de dezembro de 2023.

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