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Depois do plano de Trump, será a vez do plano de Blair para Gaza

Documento do ex-premiê britânico prevê tutela estrangeira e retarda soberania palestina em pelo menos 3 anos

Depois do plano de Trump, será a vez do plano de Blair para Gaza
Depois do plano de Trump, será a vez do plano de Blair para Gaza
Tony Blair, ex-primeiro-ministro britânico, pode comandar Gaza após o fim da guerra. Foto: Arquivo/AFP
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O ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair é cotado para liderar a transição da Faixa de Gaza, quando – e se – a proposta de paz colocada por Donald Trump sobre a mesa prosperar para além da primeira fase.

Um documento originalmente sigiloso, que acabou vazado para a imprensa na semana passada, mostra que a transição concebida por Blair levaria inicialmente três anos, com um governo controlado por personalidades estrangeiras instaladas no exterior, cujo mandato seria outorgado pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas, prevendo prerrogativas para negociar desde a entrada de ajuda humanitária até os contratos de reconstrução, passando pela criação de uma polícia local e de outros corpos armados de segurança.

Como o plano era mantido em segredo, não há ainda manifestações oficiais dos EUA, de Israel ou do próprio Blair. O que aparece são declarações dadas por figuras de segunda linha ou ex-membros dos governos envolvidos, como o antigo chefe do Mossad, o equivalente à CIA israelense, Yosi Cohen, que disse à BBC, que “adora” a ideia, pois Blair é “uma pessoa formidável”.

Blair foi premiê britânico por 10 anos (1997-2007). Nesse período, celebrizou-se por propor, na política doméstica, a chamada “terceira via”, com a qual tentou renovar seu Partido Trabalhista por dentro, fazendo a legenda passar do tradicional modelo da social-democracia europeia para um neoliberalismo cheio de concessões ao mercado. Foi sucedido pelo também trabalhista Gordon Brown, cujo governo caiu após três anos, abrindo caminho para uma onda conservadora que dura até hoje no Reino Unido, com os governos de David Cameron, Theresa May, Boris Johnson e Rishi Sunak, em sequência.

No plano internacional, ficou marcado por ter penhorado todo apoio diplomático e militar britânico ao então presidente americano, George W. Bush, quando a Casa Branca mentiu sobre a existência de armas de destruição em massa para justificar a guerra contra o Iraque de Saddam Hussein, em 2003. Anos mais tarde, em 2016, uma comissão montada pelo próprio governo britânico concluiu que Blair errou em apoiar acriticamente os EUA e também na condução das operações militares, que resultaram na morte de 179 soldados britânicos.

Ainda assim, ele foi nomeado chefe do Quarteto de Madri ou Quarteto do Oriente Médio, uma das muitas iniciativas criadas para intermediar a paz entre palestinos e israelenses, entre 2007 e 2015. Agora, ressurge como referência num novo plano internacional para reconstrução da Faixa de Gaza.

Além das críticas ao currículo pessoal de Blair – em primeiro lugar por seu apoio irrestrito à guerra no Iraque –, outro elemento negativo é a reedição de uma tutela sobre a Faixa de Gaza que remonta ao mandato britânico na Palestina, constituído a partir dos anos 1920. O aspecto colonial de uma tutela internacional é indisfarçável.

Hoje, os palestinos já conformam uma nação – constituem um grupo humano com história, identidade, cultura, território e idioma próprios. O que eles não têm ainda é um Estado e um governo, que são compostos por um aparelho burocrático estável, que exerça funções administrativas de maneira funcional dentro do território, e que responda inclusive pela segurança dos próprios membros da nação, seja internamente, por meio de um corpo policial, seja na relação com atores externos, no caso das Forças Armadas.

É irrealista esperar que o Hamas exerça esse papel, pelo simples fato de que o grupo armado palestino – engajado não apenas nos ataques de 7 e outubro contra civis israelenses, mas também na defesa intransigente da extinção do próprio Estado de Israel – não goza de prestígio e confiança para estruturar um governo civil funcional e assumir funções típicas de polícia e de forças armadas. Gaza não terá, portanto, soberania suficiente para responder pela própria segurança enquanto o Hamas estiver no controle, pois nenhuma potência relevante nessa questão aceitará essa configuração.

Por isso, o plano de Blair prevê que uma Autoridade Internacional de Transição em Gaza (Gita, na sigla em inglês) “exerça a autoridade política e estratégica suprema”, tendo, abaixo de si, uma Autoridade Executiva Palestina. Nesse modelo, os estrangeiros ficariam no topo, enquanto os palestinos ficariam na base. A segurança seria entregue a uma Força de Estabilização Internacional (ISF, na sigla em inglês).

Para uma nação que almeja ser soberana e ter um Estado reconhecido como tal, o arranjo de Blair é, no mínimo, insuficiente. Esse arranjo pode ainda ser considerado colonialista, tutelador e ofensivo pelos próprios palestinos, que se veem passando de mão em mão ao longo de décadas de história, sob diferentes justificativas. O ressentimento e a desconfiança têm razão de ser. Porém, é preciso se perguntar: que outra alternativa viável existe hoje sobre a mesa? E, não havendo, qual a real chance de os palestinos refutarem, confrontarem e implementarem uma saída alternativa com sucesso?

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