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Hora de ir às urnas

Quatro governos seguidos do Partido Conservador tornaram o Reino Unido alvo de chacota mundial

Insistência. Truss, a breve, dá lugar ao milionário Rishi Sunak, também chamado de Rishi Riquinho. Mas é preciso abreviar o domínio dos conservadores - Imagem: Daniel Leal/AFP e Justin Tallis/AFP
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Três meses e meio atrás, ele foi forçado por seu partido a renunciar em desgraça ao cargo de primeiro-ministro. No último sábado 22, Boris ­Johnson desembarcou de volta no Reino Unido, ao retornar de férias no Caribe em meio à onda dramática que envolve cada movimento seu. Johnson chegou a cogitar um retorno triunfal, após a renúncia de Liz Truss, mas acabou convencido a desistir. O Partido Conservador escolheu Rish Sunak para a tarefa. De qualquer maneira, talvez não houvesse maior símbolo do desprezo que a legenda tem pelos eleitores do que dezenas de parlamentares aparentemente dispostos a desconsiderar o fato de que Johnson é investigado por enganar o Parlamento – e pode muito bem enfrentar uma suspensão da Câmara dos Comuns, e talvez até uma eleição antecipada antes do fim do ano.

Esta situação absurda é apenas o capítulo mais recente do psicodrama conservador de uma década que impôs dificuldades incalculáveis à população britânica, corroeu sua confiança nos políticos e tornou a Grã-Bretanha motivo de chacota internacional. É a triste história de um partido governista que abandonou qualquer tentativa de criar soluções reais para os problemas que a nação enfrenta em favor da retórica populista sobre o ­Brexit, sem considerar as consequências, para sua própria sorte, para as instituições políticas e para o país como um todo. Em consequência, o Reino Unido está atolado numa crise econômica incomensuravelmente agravada pelos atos de quatro sucessivos primeiros-ministros conservadores. O país precisa e merece uma eleição geral para escolher seu próximo primeiro-ministro.

Legado de 12 anos

O desastroso e breve mandato de Truss, o mais curto da história, teve uma longa gestação. Suas seis semanas no cargo, durante as quais ela afundou a economia com um enorme pacote de cortes de impostos não financiados, foram o apogeu de 12 anos de liderança conservadora: uma história lamentável de más decisões seguidas.

O Reino Unido entrou na década de 2010 com uma infraestrutura pública muito melhorada após 13 anos de governo trabalhista, mas ainda a enfrentar uma série de profundos desafios econômicos e sociais. A crise financeira serviu como um lembrete caro da natureza distorcida do crescimento britânico: muito dependente do setor financeiro sem diversificação suficiente.

Assim, no início da última década, a Grã-Bretanha precisava desesperadamente de um governo que formulasse respostas sérias e duradouras para vários desafios, aproveitando as taxas de juro historicamente baixas dos empréstimos para investir em habilidades, infraestrutura e em escolas, hospitais, creches e cuidados de adultos. Em vez disso, conseguiu um governo de coalizão de conservadores e liberais-democratas que implementou cortes profundos de gastos, subfinanciou e reduziu o pessoal no NHS (Sistema Nacional de Saúde), buscou uma reforma estrutural ideologicamente motivada do sistema educacional que nada fez para resolver a diferença de desempenho entre crianças de origens mais pobres e mais ricas e ampliou desigualdades, cortando créditos fiscais a pais de baixa renda para financiar cortes de impostos dos mais ricos. A divisão do investimento público entre as áreas mais ricas e mais pobres aumentou. Em resumo, David Cameron e Nick Clegg criaram o terreno fértil para o Brexit: um número crescente de eleitores se sentiu desiludido com os lentos aumentos salariais e a falta de oportunidades econômicas em grandes partes do país, enquanto as áreas mais ricas continuaram a avançar.

O curto mandato de Liz Truss foi o apogeu das administrações desastrosas da legenda

Mentiras do Brexit

Foi isso que deixou a brecha para o flanco direito, eurocético, do Partido Conservador avançar com suas soluções populistas. Para eles, o Brexit sempre foi moldado pela fantasia libertária de que se livrar das algemas do trabalhismo europeu e das proteções ao consumidor poderia realizar o sonho de um Estado com baixa tributação e baixa regulamentação. Mas eles sabiam que não podiam vender a ideia ao eleitorado. Então, em vez disso, o Brexit foi lançado como a resposta ao mal-estar econômico e à perda de confiança nacional. Os eleitores foram enganados. Disseram-lhes, por exemplo, que um voto para permanecer na União Europeia seria um voto numa fronteira com a Síria e o Iraque. O Brexit tornou-se progressivamente mais difícil do que precisava ser, primeiro sob Theresa May, depois Johnson, cuja decisão tardia de apoiar o movimento o ajudou a surfar a onda eurocética em 2019.

Caos Johnson-Truss

Johnson conquistou uma maioria decisiva de 80 assentos, quando consultou o país em dezembro de 2019. Mas não foi sua popularidade pessoal que lhe rendeu uma vitória tão grande. Contra Jeremy Corbyn, ele enfrentou o líder trabalhista menos atraente por gerações. A campanha eleitoral, idealizada por Dominic Cummings, foi uma repetição populista da campanha do referendo da UE, com seu slogan para concluir o Brexit e, ao mesmo tempo, nivelar o país – dois objetivos totalmente contraditórios.

Johnson era, porém, claramente inadequado como líder e profundamente impopular no fim de seu mandato; não deveria ter levado três anos para seu partido derrubá-lo do cargo. Sua queda abriu caminho para que a ala mais conservadora impusesse Truss. Sem nenhum mandato democrático, ela anunciou dezenas de bilhões de cortes de impostos não financiados em um momento em que, com razão, também anunciou um pacote muito caro de apoio às contas de energia dos cidadãos. Os mercados reagiram rápida e brutalmente, a libra despencou e o ­custo dos empréstimos do governo e as taxas de juro dispararam. Apesar da reviravolta em quase todos os elementos desse pacote, a economia ficou permanentemente danificada. Nenhum primeiro-ministro causou tamanho caos tão cedo em seu mandato. Qualquer autoridade que Truss tivesse com seu partido parlamentar se desintegrou completamente, ­deixando-a sem escolha a não ser renunciar.

A conta final

A Grã-Bretanha precisa de um pleito que dê aos eleitores a chance de desencadear uma mudança de governo, para que possa iniciar a dolorosa recuperação dos últimos 12 anos de desgoverno. Esse processo exigirá investimentos de longo prazo em nossos serviços públicos, habilidades e infraestrutura, e um realinhamento mais próximo com a EU, para tentar reparar os danos causados às exportações britânicas. A dramática trajetória descendente do Partido Conservador deve servir de alerta para qualquer político tentado pela força inebriante do populismo. •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1232 DE CARTACAPITAL, EM 2 DE NOVEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Hora de ir às urnas”

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