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Crise fabricada

A mídia e o bolsonarismo unem-se na defesa de Netanyahu contra Lula, mas a realidade não pode ser alterada

Imagem: Ricardo Stuckert/PR
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Um apoio inesperado rompeu as críticas monolíticas dos meios de comunicação, de bolsonaristas e da parcela mais influente da comunidade israelita do Brasil. Na terça-feira 20, o coletivo Vozes Judaicas pela Libertação defendeu, em nota, as declarações do presidente Lula a respeito do massacre promovido por Israel na Faixa de Gaza. “A contradição do povo judaico ser ora vítima e agora algoz é palpável, tenebrosa e desalentadora. Lula externou o que está no imaginário de muitos de nós”, diz um trecho. “Entendemos que o nosso imperativo ético é nos posicionarmos contra o genocídio do povo palestino e contra a utilização da nossa defesa como justificativa.”

O manifesto, em certa medida, desfez o clima de Fla-Flu instalado no País desde o domingo 18, quando, em resposta a jornalistas na Etiópia, onde participara como observador da reunião de cúpula da União Africana, o presidente brasileiro arriscou-se na seguinte comparação. “O que está acontecendo na Faixa de Gaza e com o povo palestino não existe em nenhum outro momento histórico”, declarou. ‘Aliás, existiu: quando Hitler resolveu matar os judeus.”

“É uma vergonhosa página da história da diplomacia de Israel, com recurso a linguagem chula e irresponsável”, respondeu o chanceler Mauro Vieira ao seu homólogo judeu

Foi o bastante para desencadear uma avalanche de críticas ao petista e uma cobertura dos meios de comunicação intoxicada pela versão do governo de Benjamin Netanyahu, apesar de o presidente brasileiro não ter, ao contrário do que deram a entender a mídia e alguns analistas de política internacional, comparado diretamente a carnificina em Gaza ao Holocausto judeu na Segunda Guerra Mundial. Uma constatação em nada análoga, por exemplo, às acusações diretas do presidente da Turquia, Recep Erdogan, em dezembro do ano passado, bem antes de a ação militar israelense no enclave palestino ter alcançado a proporção trágica atual: cerca de 30 mil mortos, mais de 70 mil feridos, milhões submetidos a condições subumanas e a destruição total da infraestrutura da região. “Eles costumavam falar mal de Hitler. Que diferença você tem de Hitler? O que esse Netanyahu está fazendo é menos do que Hitler fez?”, disparou Erdogan, sem que Tel-Aviv esboçasse à época indignação semelhante.

Além de provocar uma crise diplomática entre os dois países, sem desfecho à vista, a declaração de Lula contaminou a disputa política interna. Ciente da força da comunidade judaica no País, da simpatia acrítica da mídia local e da ânsia da claque bolsonarista por um tema capaz de desgastar o presidente brasileiro, Israel resolveu esticar a corda. Netanyahu acusou o petista de “ultrapassar a linha vermelha” e o declarou persona non grata­, enquanto o chanceler, Israel Katz, submeteu o embaixador brasileiro, Frederico Meyer, a um constrangimento sem precedentes nas relações diplomáticas, uma “emboscada”, segundo o Itamaraty, ao repreendê-lo em público durante uma visita ao Museu do Holocausto, em Jerusalém. Katz optou por um “passa-moleque” em hebraico, língua que Meyer não domina, daí a expressão confusa, um tanto perdida, do diplomata na cerimônia.

Esticar a corda com o Brasil vem a calhar ao primeiro-ministro israelense – Imagem: Ronen Zvulun/AFP

O chanceler israelense não se deu por satisfeito. Na terça-feira 20, em uma rede social, voltou ao ataque a Lula. “Que vergonha. Sua comparação é promíscua, delirante. Vergonha para o Brasil e um cuspe no rosto dos judeus brasileiros. Ainda não é tarde para aprender História e pedir desculpas. Até então continuará a ser ­persona non grata em Israel”, escreveu. Uma conta da rede X (antigo ­Twitter) ligada ao governo israelense acusou o brasileiro de negar o Holocausto. Brasília também subiu o tom. Meyer foi chamado de volta ao País e o embaixador israelense, Daniel ­Zonshine, embora não tenha sido submetido a humilhação pública, foi convocado para uma reunião com o ministro das Relações Exteriores, Mauro Viera. Na mesma terça dos tuítes de Katz, Vieira retrucou, ao fim de uma reunião do G-20 na Marina da Glória, no Rio de Janeiro. “As manifestações do titular da chancelaria do governo Netanyahu são inaceitáveis na forma e mentirosas no conteúdo”, afirmou. “Uma chancelaria dirigir-se dessa forma a um chefe de Estado de um país amigo é algo insólito e revoltante. Uma chancelaria recorrer sistematicamente à distorção de declarações e a mentiras é ofensivo e grave. É uma vergonhosa página da história da diplomacia de Israel, com recurso a linguagem chula e irresponsável.” O pedido de retratação exigido por Tel-Aviv está fora de cogitação, garante o Itamaraty.

O último passo da desavença seria um rompimento diplomático, com consequências irrelevantes do ponto de vista econômico. O fluxo de comércio entre os países é diminuto e, talvez, os únicos a reclamar fossem os pastores evangélicos que operam o lucrativo negócio do turismo religioso. A ruptura é provável? Pouco. É possível? Depende das escolhas de Israel e, em especial, de seu embaixador no Brasil. Zonshine foi convidado a participar da manifestação a favor de Jair Bolsonaro, marcada para o domingo 25 na Avenida Paulista, mas mandou avisar que não pretende comparecer. O diplomata, que em 2023 aceitou participar de uma reunião com parlamentares opositores onde sobraram críticas a Lula, desta vez apressou-se em colocar panos quentes. Em entrevista ao portal UOL, afirmou que tanto o presidente brasileiro quanto Netanyahu “precisam ter mais cautela nas palavras” e que não há razão para um rompimento. Faltou combinar a estratégia com seu superior. Enquanto Zonshine se esforçava para reduzir a temperatura da crise, Katz fez mais uma provocação. Ao lado de uma mulher que escapou viva dos ataques do Hamas, o chanceler israelense sugeriu ao petista “ouvir sobreviventes” do 7 de outubro e classificou a matança em Gaza de “guerra justa”. A disposição do Palácio do Planalto é superar o episódio, mas uma eventual expulsão de Zonshine continua sobre a mesa, caso Tel-Aviv insista nas “provocações”.

Em Rafah, os palestinos seguem confinados como bois à espera do abate – Imagem: Mohammed Abed/AFP

Os bolsonaristas têm tentado aproveitar o embate entre Lula e Netanyahu para desviar o foco das investigações contra o ex-capitão e desgastar a imagem do petista. Um pedido de impeachment do presidente brasileiro com mais de cem assinaturas de parlamentares da oposição foi protocolado na Câmara dos Deputados, sob o argumento de que o petista coloca o País em risco de guerra. As chances de a iniciativa prosperar são mínimas, mas ela serve para mobilizar as bases. Na esteira da reação compacta da mídia, bolsonaristas amplificam a disputa nas redes sociais, um dos motivos de 83% das reações ao episódio serem negativas a Lula, conforme levantamento de empresas especializadas. A Confederação Israelita do Brasil, a mais influente organização judaica, alinhada a Bolsonaro, aproveita a onda. Claudio Lottenberg, presidente da confederação, em uma das tantas entrevistas concedidas ao longo da semana, classificou a afirmação de “distorção perversa da realidade”. Até o apresentador Luciano Huck abandonou a aparente licença sabática da política e entrou na arena. “A guerra de hoje não é remotamente parecida com o Holocausto. Espero que Lula repense sua posição e silencie vozes antissemitas à sua volta.”Em defesa do presidente brasileiro, a Federação Árabe Palestina afirmou, em nota: Lula lavou a “alma dos palestinos e daqueles que ainda têm alguma humanidade e decência de reconhecer a magnitude da tragédia”. O Hamas agradeceu a coragem do petista e o vice-presidente, Geraldo Alckmin, demonstrou mais uma vez sua lealdade. “O que ele defende é a paz. O que ele quer é a paz, que haja um cessar-fogo”, ressaltou na saída de um evento na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo na segunda-feira 19. Parlamentares e intelectuais progressistas, além das centrais sindicais, também apoiaram a posição do presidente.

Lula foi intempestivo? Cometeu um deslize ao falar de improviso? Não parece. O massacre em Gaza foi um tema recorrente em sua viagem à África e ele, provavelmente, escolheu a hora e o lugar que considerou adequados. No Egito, primeira escala da visita, o presidente brasileiro havia tangenciado o ponto central da declaração mais contundente na Etiópia: “Não tem nenhuma explicação o comportamento de Israel. A pretexto de derrotar o Hamas, está matando mulheres e crianças, coisa jamais vista em qualquer guerra que eu tenha conhecimento”. De acordo com Celso Amorim, ex-chanceler e ­atual assessor especial da Presidência para Assuntos Internacionais, a declaração “sacudiu o mundo, moveu emoções e pode ajudar a resolver o conflito em Gaza”.  Em tempo: tanto no Egito quanto na Etiópia, o petista condenou a “ação terrorista” do Hamas em 7 de outubro do ano passado, antes de completar as frases.

O Tribunal Internacional de Justiça, em Haia, iniciou a análise da acusação de que Israel implantou um sistema de apartheid no território palestino

As mesmas circunstâncias, além da certeza de plantar a semente da discórdia em um terreno fértil, parecem guiar a indignação do governo israelense. Acusar Lula de desdenhar o Holocausto e, de maneira subjacente, estimular o antissemitismo serve de pretexto em um momento especialmente desfavorável a Netanyahu, apesar de o primeiro-ministro manter o único apoio que de fato lhe interessa no tabuleiro internacional: na terça-feira 20, os Estados Unidos vetaram outra resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas em favor do cessar-fogo imediato na Faixa de Gaza.

Há, no entanto, fissuras crescentes na comunidade internacional. Washington mantém a relação carnal com Tel-Aviv, mas diante da perda do apoio do eleitorado jovem do Partido Democrata, da perspectiva de uma eleição presidencial complicada e dos riscos de um conflito alastrado no Oriente Médio, o presidente Joe Biden tem pressionado Israel a encerrar a operação militar o quanto antes. Embora tenham vetado a resolução no Conselho de Segurança, os EUA pela primeira vez admitiram a inclusão do termo cessar-fogo em um texto a ser analisado. Amea­çam ainda impor sanções econômicas a colonos judeus que ataquem palestinos ou continuem a expandir propriedades na Cisjordânia ocupada, posição seguida pelo Reino Unido e o Canadá, entre outros. Diferentemente da histeria dos jornalistas brasileiros, de bolsonaristas e da comunidade judaica com poder aquisitivo, nenhum líder mundial veio a público criticar as declarações de Lula.

O Tribunal de Haia analisa a acusação de apartheid. O chanceler israelense levou o embaixador brasileiro a uma “emboscada” – Imagem: Ahmad Gharabli/AFP e Frank van Beek/Corte de Justiça Internacional

Mais: na terça-feira 20, o Tribunal Internacional de Justiça, sediado em Haia, voltou a analisar um pedido da África do Sul, com apoio veemente do Brasil, desta vez a respeito do regime de segregação imposto por Israel nos territórios palestinos. A corte ouvirá 52 países antes de tomar uma decisão. “Nós, como sul-africanos, vemos, ouvimos e sentimos profundamente as políticas e práticas discriminatórias desumanas do regime israelita como uma forma ainda mais extrema do apartheid institucionalizado contra os negros do meu país”, afirmou ­Vusimuzi Madonsela, representante africano. “É claro que a ocupação ilegal de Israel também tem sido administrada em violação do crime do apartheid. É indistinguível do colonialismo. O apartheid de Israel deve acabar.” Em janeiro, o mesmo tribunal, em resposta a outra demanda da África do Sul igualmente chancelada por Brasília, rejeitou a ordem de cessar-fogo, mas admitiu serem “plausíveis” os riscos de genocídio em Gaza.

As forças israelenses preparam uma incursão mortífera em Rafah, onde estão confinados milhares de palestinos. A mídia brasileira invocará o “legítimo direito de defesa”?

Tipificar o crime de genocídio sempre foi tarefa complexa e depende de uma série de atos e ordens diretas inquestionáveis, documentadas, difíceis de ser reunidas, mas vários ativistas de direitos humanos acreditam na existência de indícios suficientes para, ao menos, aprofundar as investigações. Organizações civis como a Human Rights Watch emitem alertas constantes sobre os métodos do governo Netanyahu desde o início da ofensiva. Em um deles, acusa o governo de Netanyahu de usar a fome como arma de guerra. “As forças israelitas bloqueiam deliberadamente o fornecimento de água, alimentos e combustível”, denuncia a ONG, “ao mesmo tempo que impedem a assistência humanitária, aparentemente arrasando áreas agrícolas e privando a população de bens indispensáveis à sobrevivência.” Um dos entrevistados pela revista norte-americana Time sobre o tema, Raz Segal, diretor do programa de estudos de genocídio na Universidade de Stockton, na Califórnia, não tem dúvida e vê um “caso clássico”. Israel, declarou Segal, pratica três atos relacionados: matar, causar lesões corporais graves e adotar medidas calculadas para provocar a destruição de um grupo.

Enquanto açula a claque interna e os antilulistas no Brasil, Netanyahu prepara o que, provavelmente, será a maior e mais mortífera ofensiva na Faixa de Gaza. Caso o Hamas não liberte os reféns israelenses ainda em seu poder, uma operação militar em Rafah, na fronteira com o Egito, começará em 10 de março. A escolha da data não é coincidência, ela marca o início do Ramadã, período sagrado para os muçulmanos. Expulsos do norte e da região central do enclave, perto de 1,5 milhão de palestinos estão confinados na cidade como bois à espera do abate. O governo egípcio decidiu construir um muro para evitar uma migração em massa e a transferência do conflito para seu território.

Às vésperas da reunião do Conselho de Segurança da ONU, novo bombardeio em Gaza – Imagem: Said Khatib/AFP

A entrada irregular de ajuda humanitária obriga, segundo relatos de ­ONGs de direitos humanos, os confinados a beber água insalubre e a comer ração animal. O atendimento médico é cada vez mais precário e a campanha contra a agência da ONU de assistência aos refugiados na Palestina, acusada pelos israelenses de proteger o Hamas, enfraqueceram a capacidade de intervenção. Relatório da ­Unicef e da Organização Mundial da Saúde aponta um rápido aumento da morte de crianças, principais vítimas do conflito. Ao menos 90% dos menores de 5 anos foram afetados por uma ou mais doenças infecciosas e 15% com até 2 anos sofriam desnutrição aguda. “A fome e as doenças são uma combinação mortal”, enfatizou Mike Ryan, responsável pelas emergências da OMS. ­Netanyahu recusa-se a qualquer negociação em torno da criação de um Estado palestino e os mais radicais integrantes do ministério defendem a expulsão da população de Gaza para o Deserto do Sinai. No dia da votação da resolução de cessar-fogo no Conselho de Segurança, no fim vetada pelos EUA, Netanyahu ordenou um bombardeio inclemente e indiscriminado no enclave. Uma demonstração de força e um alerta de que Tel-Aviv não pretende submeter-se às regras internacionais. Ou, na interpretação de grande parte da mídia brasileira, um exercício “legítimo do direito de Israel à autodefesa”. •

Publicado na edição n° 1299 de CartaCapital, em 28 de fevereiro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Crise fabricada’

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