Mundo

cadastre-se e leia

Cravos murchos

No cinquentenário do 25 de Abril, a extrema-direita caminha para se tornar uma força que não pode mais ser ignorada

Intruso. Partido de um homem só, o Chega de Ventura é o penetra na festa do PS de Nuno Santos e do PSD de Montenegro – Imagem: Pedro Ruas/PS, João Pedro Domingos/PSD e Partido Chega!
Apoie Siga-nos no

Vai ser bonita a festa, pá? A resposta depende do recado das urnas no domingo 10. Um mês e meio antes do cinquentenário do 25 de Abril, uma das mais poéticas revoluções populares do século XX, que pôs abaixo uma longa ditadura não pelo barulho dos fuzis, mas pelo aroma dos cravos vermelhos, Portugal defronta-se com seus piores fantasmas. Forçados a votar pela segunda vez no intervalo de dois anos, depois de as acusações de feitio lavajatista do Ministério Público, consideradas “vagas e contraditórias” pela própria Justiça, levarem à queda do primeiro-ministro socialista António Costa, os eleitores decidirão os destinos do país mergulhados em desesperança, frustração e raiva. Entre tantas incógnitas, apenas uma coisa parece certa: o Chega, partido de extrema-direita criado em 2019, abrigo de xenófobos, racistas, desmiolados e saudosistas do regime de António de Oliveira Salazar, vai descolar-se do pelotão de legendas eternamente coadjuvantes no jogo político e consolidar-se como a terceira força nacional, atrás do PS e do PSD, não necessariamente nesta ordem. Se o movimento inventado e liderado pelo ex-comentarista esportivo André Ventura será um bode ou um elefante na sala da governabilidade, só o escrutínio de domingo revelará. A agremiação varia, em diferentes pesquisas, de 12% a 20% das intenções de voto, o que torna impossível garantir a estabilidade de um eventual governo conservador sem o apoio de Ventura.

A eleição determinará o quanto o populismo de direita está normalizado no país. Em 2020, o medo de uma aliança entre o tradicional PSD e o Chega, então no patamar dos 7%, levou o eleitorado a premiar o Partido Socialista com uma maioria absoluta no Parlamento, fenômeno não captado pelas sondagens. Dois anos depois, o PS, sob a batuta de Pedro Nuno Santos, um ex-ministro de Costa de 46 anos que encara a difícil missão de defender o legado do governo demissionário e ser o rosto da mudança, insiste na denúncia da “ameaça” extremista – ou seja, alerta Nuno Santos, não haverá um primeiro-ministro à direita sem o ­Chega. Eis um ponto pertinente: embora Luís Montenegro, o candidato do PSD, repila de forma sistemática a possibilidade de um arranjo com Ventura (“Não é não”, repete), inúmeros líderes do partido e das outras duas legendas que formam a coligação denominada Aliança Democrática, o CDS e o PPM, flertam com a ideia. Pedro Passos Coelho, espécie de totem dos social-democratas, disse em mais de uma ocasião que o Chega “não é um partido antidemocrático”. Montenegro tem apelado ao voto útil na direita “responsável”, estratégia aparentemente bem-sucedida na última semana de campanha, quando se revela a volatilidade das pesquisas de opinião. Diferentes institutos captaram nos últimos dias uma desidratação do voto de protesto e um viés negativo da candidatura de Ventura. A ver.

O Chega, dizem as pesquisas, é o partido preferido entre os jovens. No cômputo geral, oscila de 12% a 20%

A variação do humor dos portugueses levanta dúvidas sobre a duração do ciclo do populismo de direita. Segundo o escritor Miguel Sousa Tavares, comentarista político de uma lucidez acima da média, a eleição tende a marcar o ápice do ­Chega. “É um partido de um homem só”, afirma. “O Ventura é um excelente tribuno, mas não existe nada à volta dele.” Pesquisador do ISCTE, reconhecido centro de ciências sociais em Lisboa, o historiador italiano Riccardo Marchi, estudioso do radicalismo, oferece outra perspectiva. Está em curso, diz, uma transformação duradoura na dinâmica política, observada em outras partes do mundo, em particular na Europa. “A direita radical”, na sua definição, renovou a competição eleitoral, rompeu o engessamento do bipartidarismo em muitas nações e caminha para definir a agenda do seu espectro. “Daqui a pouco não haverá distinção entre a direita radical e a direita tradicional, moderada. Serão a mesma coisa.”

Parte do fôlego eleitoral do Chega vem do uso desbragado das redes sociais e da captura da indignação da juventude. No eleitorado TikTok, de 18 a 34 anos, que enxerga o 25 de Abril como um evento histórico distante e nunca viveu acossada pela mão pesada de uma ditadura, o partido de Ventura lidera. “Os jovens”, avalia Sousa Tavares, “associam a democracia ao bem-estar e, do ponto de vista econômico, o país não vai bem. O eixo dinâmico europeu deslocou-se do centro-sul para o leste. Portugal é cada vez mais uma economia periférica”.

Memória nublada. Muitos jovens não sabem o que era Portugal antes da Revolução dos Cravos, um dos mais poéticos levantes populares do século XX – Imagem: Museu Nacional Resistência e Liberdade/Portugal

No ano passado, com os socialistas no poder, o PIB cresceu 2,3%, maior taxa do continente, e a dívida pública ficou abaixo dos 100% do produto interno pela primeira vez em 15 anos. Em fevereiro, a agência S&P elevou a nota de bom pagador do país para A-. São feitos aplaudidos pela banca, mas sem ganhos palpáveis na vida dos cidadãos, ao menos por enquanto. Portugal tem um dos menores rendimentos médios da União Europeia, 1.505 euros, atravessa uma crise da habitação, faltam professores e médicos e 30% dos jovens, a maioria com formação superior, preferiram emigrar. “É uma geração que vive pior do que os pais”, lamenta Sousa Tavares. Entende-se o apelo populista. Ventura oferece soluções fáceis para problemas complexos e o faz sem nenhuma preocupação com a veracidade dos fatos. Importa a verossimilhança. Sua proposta econômica é atender a todas as demandas e insatisfações, dos policiais aos professores, por meio do combate à corrupção, que sugaria dos cofres públicos 20 bilhões de euros por ano. Nem ele tem certeza do número: antes de passar a citar esse valor impressionante, Ventura assoprava uma cifra mais modesta, 8 bilhões.

Eu não estaria, porém, a escrever esta reportagem se Portugal não experimentasse uma caça às bruxas de encher de orgulho a “República de Curitiba”. Em novembro, uma ilação do Ministério Público, baseada em um grampo telefônico de terceiros, provocou a queda do socialista Costa e precipitou a convocação de novas eleições. Um mês depois, o juiz do caso não encontrou indícios de crime no comportamento do primeiro-ministro, seja na licença para exploração de lítio, seja na construção de um data center no interior do país. Em janeiro, uma operação espetaculosa, que mobilizou cerca de 300 agentes do Estado, levou à demissão do governador da Ilha da Madeira, Miguel Albuquerque. Da mesma forma, ao analisar as acusações dos procuradores, o magistrado responsável por instruir o processo foi taxativo: “Consideramos não existir nos autos um qualquer elemento probatório que permita indiciar, muito menos indiciar fortemente, a sua prática”. A sanha jurídico-policial levou o ex-primeiro-ministro José Sócrates a cunhar uma frase lapidar. “O Ministério Público ganhou as eleições”, alfineta.

Os candidatos falam em “estabilidade”, mas o que vem pela frente é um período de instabilidade

Sócrates sabe bem do que fala, é a maior vítima do “lavajatismo” português. Há mais de uma década, enfrenta um inquérito sem-fim, o Processo Marquês, no qual é mantido na pior das condições, a de eterno suspeito. O ex-premier passou 11 meses na cadeia sem nenhuma condenação e desde então trava uma batalha onde as regras mudam ao sabor da vontade da Justiça. Em janeiro, três desembargadoras acataram um recurso do Ministério Público e revogaram a decisão instrutória do juiz Ivo Rosa, que havia praticamente demolido o cerne das acusações. Pior: as magistradas não se limitaram a atender ao pedido dos procuradores, mudaram a natureza de alguns crimes imputados a Sócrates, o que, obviamente, o levou a recorrer da decisão. “Foi uma derrota para a Justiça, não para mim”, declarou. Não por acaso, o despacho das desembargadoras em meio à crise política teve um efeito óbvio, inflou a sensação de que Portugal vive atolado em um “mar de lama”. Cerca de 60% dos eleitores não confiam no Parlamento, indica uma pesquisa recente.

O efeito da criminalização da política é conhecido. A carreira de Ventura foi impulsionada, aliás, pelo processo ­Marquês. Formado em Direito, o líder extremista ganhava a vida como comentarista-torcedor do Benfica em um canal de tevê popularesco – imagine uma ­Jovem Pan sob o comando editorial de José Luiz ­Datena. Da parcialidade futebolística às platitudes sobre a corrupção generalizada foi um pulo. À indignação de botequim, ­Ventura, o Bolsonaro lusitano, uniu a xenofobia – primeiro aos ciganos, depois aos migrantes de origem islâmica –, o reacionarismo nos costumes, traduzido no combate à “ideologia de gênero”, e a ilusão de um Portugal mítico, pronto a reviver o passado de glória, basta vontade e amor à pátria. Abaixo do guarda-chuva do Chega abrigam-se as figuras mais bizarras da feira política, entre eles um brasileiro que prega contra a imigração. Como outros exemplares no mundo, a legenda afronta a ética e a estética.

Para algum alívio dos filhos do 25 de Abril, a eleição continua em aberto. O número de indecisos beira os 20%, o que impede qualquer projeção confiável. Durante a campanha, Montenegro e Nuno Santos, os principais candidatos, usaram e abusaram da palavra “estabilidade”. Sintomático. Na meteorologia política, os próximos anos serão de chuvas e trovoadas. •

Publicado na edição n° 1301 de CartaCapital, em 13 de março de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Cravos murchos’

Leia essa matéria gratuitamente

Tenha acesso a conteúdos exclusivos, faça parte da newsletter gratuita de CartaCapital, salve suas matérias e artigos favoritos para ler quando quiser e leia esta matéria na integra. Cadastre-se!

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo