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Conversas vazadas mostram cumplicidade entre juízes e poder econômico na Argentina

Legisladores portenhos se mobilizam para exigir julgamento político aos funcionários públicos envolvidos

Julian Ercolini, juíz federal responsável pelo processo contra Cristina Kirchner, se preocupa: "se tiraram fotos nossas entrando nos carros, ficamos 'sujos'". Foto: Reprodução
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*Fernanda Paixão | Buenos Aires, Argentina

“A sentença foi escrita em 2 de dezembro de 2019, a primeira vez que dei testemunho perante este tribunal”, afirmava a vice-presidenta da Argentina, Cristina Kirchner, dias antes de sua sentença ser anunciada pelo caso de obras públicas em Santa Cruz. A afirmação logo encontrou eco em chats de Telegram vazados que revelam a articulação entre a Justiça e o poder econômico no país.

O que se conheceu foi o vínculo íntimo entre diretores do Grupo Clarín, maior conglomerado midiático do país, um ministro macrista, um ex-agente de inteligência e quatro juízes, um deles responsável pelo processo que terminou com a condenação à vice-presidenta. A parcialidade da Justiça exposta à luz do dia.

Já são quatro as instâncias impulsionadas para penalizar os envolvidos. Em primeiro lugar, a investigação solicitada pelo governo nacional sobre seus funcionários públicos envolvidos no caso, por não cumprimento de deveres e recebimento de favores.

Em segundo, o pedido de julgamento político aos quatro juízes no Conselho da Magistratura, entidade que nomeia e regulamenta as faculdades e os funcionários do Poder Judiciário. Por outro lado, o bloco da coalizão do presidente Alberto Fernández, a Frente de Todos, apresentou um pedido de julgamento na legislatura da cidade de Buenos Aires aos funcionários municipais envolvidos no episódio: o ministro de Justiça e Segurança de Buenos Aires, Marcelo D’Alessandro, e o Procurador-geral da capital argentina, Juan Bautista Mahiques.

Por fim, está em processo um pedido coletivo por um julgamento acadêmico para o juiz federal Julián Ercolini, professor e diretor de uma especialização na faculdade de Direito da Universidade Pública de Buenos Aires (UBA). Já foram reunidas mais de 10 mil assinaturas na instituição.

A reação ao escândalo dos chats vazados é um primeiro sinal de uma possível instalação do debate sobre como a decisão dos representantes da Justiça afetam a sociedade como um todo, afirma Marisa Herrera, doutora em Direito, uma das redatoras do novo Código Civil argentino e demandante do pedido de julgamento acadêmico a Ercolini. “O que os chats revelam era algo que presumíamos, mas ao vê-lo, nos deixa, por sorte, indignados”, diz.

“O que começa a ficar evidente é como uma Justiça ruim prejudica a todos em termos de qualidade democrática. Aos vulneráveis, nem se fale, porque os juízes são a garantia última dos direitos humanos; mas também para os poderosos, porque um juiz que está de um lado, amanhã pode estar de outro”, pontua, destacando que não há garantias sobre o que pensam os que representam a Justiça no país.

Nesse sentido, Herrera exemplifica como sentenças a favor das empresas de telecomunicações derrubaram o decreto do governo nacional que determinava serviços de internet, tv e telefone como essenciais, congelando as tarifas. Com a sentença favorável para as empresas – e em detrimento da população, em plena pandemia –, os preços continuaram subindo, fixados de forma livre pelas companhias.

“O que está acontecendo é uma mostra muito eloquente do momento crítico que estamos atravessando”, diz Herrera. “A pergunta é quando vamos chegar no fundo da questão para que algo novo surja. É minha grande inquietude.”

Conversa de poderosos

O chat, nomeado como “Operação Página 12”, reúne figuras de alto escalão do poder judiciário, da mídia hegemônica e funcionários públicos ligados à coalizão de direita Juntos por el Cambio (JxC), a qual levou Mauricio Macri à presidência entre 2015 e 2019. O grupo tinha um objetivo inicial: alinhar narrativas sobre a viagem que fizeram ao Lago Escondido, na Patagônia, que foi descoberta e divulgada pelo jornal Página 12, em outubro.

O que não foi revelado nessa primeira matéria é que além de funcionários públicos, responsáveis pela ordem e gestão pública em diversos âmbitos, esta viagem incluía dois diretores do Grupo Clarín. Trata-se do CEO da empresa, Jorge Rendo, e o sobrinho do dono do império Clarín, Pablo Cassey, diretor de Assuntos Legais. Não só estiveram presentes: foram os que convidaram e pagaram a viagem de luxo ao grupo, como se soube depois nas conversas.

Imagens de câmeras do aeroporto incluídas na investigação comprovam a viagem dos funcionários públicos, convidados por diretores do Clarín
Foto: Ministério Público Fiscal/Télam

Por isso, era necessário forjar comprovantes de pagamento: os juízes, o ministro portenho e agentes de inteligência federal foram convidados com uma viagem paga pelo maior veículo de comunicação, de grande impacto na opinião pública no país.

Apesar de o Página 12 ter sido o único veículo a reverberar a notícia do encontro secreto, o grupo de poderosos ficou alerta e reagiu. Assim, criaram o grupo de Telegram que, agora de conhecimento público, deu origem ao chamado “Lago Escondido Gate”, ou “chats do poder”.

A conversa inclui quatro juízes federais, um deles responsáveis por levar adiante a denúncia contra Cristina no caso das obras públicas: Julián Ercolini. Lotado em um tribunal em Buenos Aires, Ercolini inicialmente havia se declarado incompetente para tomar o caso, uma vez que as obras públicas estavam localizadas em outra província. Após o judiciário de Santa Cruz apontar a ausência de irregularidades no caso, Ercolini decide reabrir o caso que terminaria com a condenação da vice-presidenta.

“Há outro aspecto que é fundamental no lawfare, que é o jornalismo”, pontuou Cristina, em seu pronunciamento logo após a leitura de sua sentença no dia 6 de dezembro de seis anos de prisão e inabilitação política perpétua. “Para fazer essas condenações que não têm nenhum instrumento ou clivagem na Constituição, no Código Penal nem nas regulamentações administrativas, o que é indispensável, então? A cumplicidade da mídia.

As capas dos jornais Clarín e La Nación destacaram, no dia seguinte, a condenação como “uma sentença histórica”. A notícia se deu em um 7 de dezembro, o que Cristina considerou um “presente”, um gesto dos “amigos juízes” às empresas midiáticas: foi também um 7 de dezembro, em 2012, a data estipulada pela Corte Suprema como prazo limite para que os meios de comunicação se adequassem à Lei de Meios de Comunicação.

A lei tem por objetivo impedir o monopólio midiático e favorecer o pluralismo de veículos, determinando um limite de licenças para tv, rádio e cabo por empresa. O Grupo Clarín foi ferrenho em impulsionar uma campanha detratora da lei, e conseguiu, por uma medida cautelar, impedir por anos a vigência do texto. Com a posse de Macri em 2015, a Lei de Meios foi desmanchada por meio de um decreto presidencial.

Pressão para julgamento político de ministro e procurador portenhos

O bloco da Frente de Todos convocou uma mobilização para sexta-feira (16), às 17h, no Ministério Público Fiscal na cidade de Buenos Aires, para exigir o julgamento político aos funcionários portenhos envolvidos no escândalo dos chats do poder, o ministro D’Alessandro e o chefe dos procuradores Bautista Mahiques.

Terão como lema “Fora mafiosos de CABA” [sigla de Cidade Autônoma de Buenos Aires] e “Que Larreta deixe de encobertá-los”, em referência ao prefeito da cidade: Horacio Rodríguez Larreta.

Após o vazamento dos chats, o ministro de segurança de Larreta foi enfático em sua contrariedade com o chefe da Polícia de Segurança Aeroportuária (PSA) na conversa com os juízes, em tom ameaçador. Nas mensagens, sugere persegui-lo ou “mandar buscá-lo”, uma vez que consideravam que a informação sobre a viagem ao Lago Escondido, publicada pelo Página 12, teria sido facilitada pela PSA. Sobre a viagem, Larreta sugeriu que o ministro teria “ido de férias”.

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