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Conheça Lula, na Sardenha, cidade que cultua líderes da esquerda mundial

Com cerca de 1.300 habitantes, o município chama a atenção por dois aspectos: a simpatia de seu povo, os lulesi, e as referências a personalidades da esquerda mundial

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por Paloma Varón, especial para a RFI de Lula, na Sardenha

Quem viaja pelo interior da Sardenha, ilha italiana paradisíaca no mar Mediterrâneo, pode se deparar não com uma, mas com várias placas onde se lê “Lula 13”. Mas não se trata da campanha do ex-presidente brasileiro e candidato à eleição em 2022 na ilha sarda, e sim, da sinalização que aponta os caminhos para se chegar ao município que tem uma inegável tradição de esquerda, com símbolos em toda parte.

Com cerca de 1.300 habitantes, o município de Lula, na província de Nuoro, na região autônoma da Sardenha, chama a atenção por dois aspectos: a simpatia de seu povo, os lulesi, e as referências a personalidades da esquerda mundial em cada uma das poucas ruas da comune.

Quando a reportagem da RFI esteve em Lula, logo após o primeiro turno das eleições no Brasil, a cidade estava toda enfeitada com bandeirolas, por causa das festas em torno de São Francisco, celebrado no dia 4 de outubro.

Saindo da igreja principal, com santinhos onde se lia “São Francisco de Assis – Lula”, seguimos o corso Antonio Gramsci. A via pública homenageia o filósofo e escritor sardo, membro fundador do Partido Comunista Italiano, que foi preso pelo regime do ex-ditador Benito Mussolini e escreveu os famosos Cadernos do Cárcere. Gramsci é, até hoje, um teórico e intelectual que influencia a esquerda mundial, principalmente por ter formulado o conceito de “hegemonia cultural”, para descrever o tipo de dominação ideológica de uma classe social sobre outra.

Mais adiante, a praça Rosa Luxemburgo recorda a filósofa e economista marxista polaco-alemã. Ela se tornou conhecida, em todo o mundo, pela militância revolucionária ligada à Social-Democracia da Polônia, ao Partido Social-Democrata da Alemanha e ao Partido Social-Democrata Independente da Alemanha. É nesta praça que fica o Museu Difuso de Arte Contemporânea de Lula (MAC Lula).

O MAC Lula é um dos pontos turísticos altos da cidade, mas o mais interessante é caminhar pelas ruas ao redor do centro e ver as inúmeras obras que existem a céu aberto.

A melhor forma de conhecer Lula é a pé, uma vez que a cidade é pequena. Na caminhada, é possível apreciar, além de algumas esculturas, dezenas de murais pintados em praticamente todas as ruas e ruelas, com temas de trabalhadores, operários, o proletariado do qual falava o filósofo alemão Karl Marx.

O revolucionário comunista russo Vladimir Ilitch Ulianov Lênin tem o seu mural em Lula. Lênin é também nome de rua, assim como o teórico alemão Karl Marx, autor de clássicos como “O Capital” e o “Manifesto Comunista”, que influenciam gerações de pensadores do século 19 até hoje, incluindo as personalidades citadas anteriormente.

Quando perguntados como se sentiam em relação a Georgia Meloni, líder do partido de extrema direita Irmãos da Itália (Fratelli di Italia) e vencedora das recentes eleições legislativas realizadas no país, os lulesi preferiram não falar sobre ela. Como sardos, nascidos em uma ilha e região autônoma, eles parecem se ver pouco ou nada representados por quem ocupa a cadeira de primeiro-ministro em Roma. Mas depois de uma certa insistência, um dos lulesi logo rebateu: “Aqui é “Bakunin!”.

Rival de Marx na Primeira Internacional Socialista, o anarquista russo Mikhail Bakunin não é nome de rua em Lula, mas é lembrado por seus habitantes, familiarizados com as teorias socialistas da segunda metade do século 19. Marx e Bakunin tiveram conflitos entre 1868 e 1872, quando o russo foi expulso da Internacional.

Mas, quando perguntados se preferiam Lula ou Bolsonaro, no Brasil, não hesitaram em responder: “Lula!”. Outras ruas da cidade recebem os nomes dos revolucionários italianos Giuseppe Garibaldi – o “herói do velho e do novo mundo”, como descreveu o escritor francês Alexandre Dumas – e Giuseppe Mazzini, assim como do guerrilheiro argentino Che Guevara, que participou da Revolução Cubana de 1959 ao lado de Fidel Castro.

História de lutas operárias

Com uma longa história, Lula guarda traços do período Neolítico, que se estendeu de 10.000 a.C. a 3.000 a.C, até o passado recente, ligado à exploração das minas de prata e chumbo de Sos Enathos e Guzurra-Argentaria, agora incluídas no parque geomineral da Sardenha. A atividade mineira remonta, pelo menos, à época romana, quando ali trabalhavam escravos condenados à mineração. O pico da produção ocorreu na virada dos séculos 19 e 20; depois, entrou em um lento declínio, até fechar na década de 1990.

Uma das primeiras greves dos mineiros ocorreu em Lula, em 1899, e terminou tragicamente. Os lulesi eram produtores de carvão, produto que tinha grande demanda, e também de cal. Os sítios de extração estão localizados em paisagens espetaculares na cordilheira do Albo, um imponente monumento natural com colinas, desfiladeiros, cavernas e picos com mais de mil metros de altura. As falésias oferecem dezenas de trilhas para os entusiastas de escalada.

Tradições e festas populares

Lula tem três festas típicas, todas em setembro: Madonna del Miracolo, San Nicola e San Matteo, com jantares à base de ovelha cozida e morcela.

No interior, a dois quilômetros do centro, se encontra o santuário rural de São Francisco de Assis, destino de romarias e de duas festas populares, que acontecem no início de maio e em outubro. A peregrinação é descrita pela escritora sarda Grazia Deledda, no livro “Elias Portolu”, e está ligada à preparação de um prato típico, o su filindeu, feito de massa com queijo.

Inúmeras citações de Deledda também aparecem nos muros de Lula, já que ela conquistou o Prêmio Nobel de Literatura em 1926. Uma escultura em homenagem à autora, nascida em Nuoro, a 40 km de Lula, está exposta na praça Rosa Luxemburgo, em frente ao MAC Lula.

Outra tradição enraizada na região é o Carrasecare luvulesu, um dos carnavais mais particulares da Sardenha. A protagonista da festa é a máscara de su battiledhu (‘vítima’), com o rosto sujo de fuligem, sangue e um cocar com chifres, preso por um lenço feminino. A origem da celebração está nos ritos arcaicos de fertilização da terra com sangue.

Para dar início ao carnaval, em meados de janeiro, os lulesi acendem fogueiras para Santo Antônio, entoam canções, bebem vinho e comem especialidades locais, como o bolo s’aranzada e o sos vuvusones, um doce sardo.

Um dos lulesi que fez questão de abrir a sua casa para receber a reportagem da RFI, Giovanni Marras, mostrou fotos desta festa, que ele classifica como uma homenagem a Baco (Dionísio, para os gregos), o deus do vinho e da natureza.

Além do sardo, os habitantes de Lula falam um dialeto da região, o nuorese. Mas com um pouco de italiano, e até mesmo o nosso português brasileiro, a comunicação é fluída, já que os lulesi são bastante receptivos aos turistas.

Origem do nome

Mas de onde vem a denominação Lula?

A explicação não é exata, mas acredita-se que venha do nome latino Julia, frequente em povoados romanos, e que, segundo alguns estudos, significaria “Sagrado para o Deus dos bosques”. A cidade certamente foi habitada pelos romanos: as minas de Argentaria, Guzurra e Sos Enathos, que estiveram em atividade até uma década atrás, atestam isso.

Como chegar

Para chegar em Lula, o ideal é pegar um voo para o aeroporto de Olbia e, de lá, seguir de carro para o município. O viajante não verá placas durante o trajeto de cerca de 90 km, a não ser quando faltarem exatos 13 km para chegar ao destino final. Daí em diante, é só desligar o GPS, seguir as indicações de Lula e aproveitar a viagem.

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