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Como o Chile foi da ‘Primavera’ de 2019 à vitória da extrema-direita na Constituinte

População escolhe apoiadores de Pinochet para revisar a Constituição do próprio ditador; CartaCapital ouviu Talita São Thiago Tanscheit, doutora pela UERJ, sobre o tema

Foto: Claudio Reyes/AFP
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No último domingo 7, a população do Chile escolheu os 51 membros do conselho que será responsável por elaborar a nova Constituição do país. Em uma derrota para o presidente Gabriel Boric, venceu a extrema-direita. O Partido Republicano, que venceu em 15 das 16 regiões do país, comandará a redação do texto.  

Com isso, o comitê político que atualizará a Carta herdada dos tempos do ditador Augusto Pinochet será composto da seguinte forma: 22 cadeiras para o Partido Republicano, 17 cadeiras para a Unidade para o Chile (governista), 11 cadeiras para o bloco de centro-direita Chile Seguro e 1 cadeira para o representante indígena do povo Mapuche.

A previsão é que o conselho finalize o texto no início de novembro. A votação popular está marcada para o dia 17 de dezembro.

Do estallido à incerteza

O jogo político e social do Chile mudou de lado em 2019, quando a população do país, solapada pelo modelo econômico que ainda privilegia a iniciativa privada sobre o Estado – especialmente no que se refere à questão previdenciária – foi às ruas. 

Os protestos começaram na capital chilena, Santiago, e tomaram o país, marcados por confrontos contra a polícia, conhecida como carabineros. Entre as muitas demandas das mobilizações, estavam a diminuição dos altos custos de vida, críticas ao baixo valor pago em pensões e ao difícil acesso a tratamentos de saúde no Chile. 

O estallido social – um dos nomes dados aos protestos – ficou marcado pela ausência de uma liderança específica e, na sua pauta, também estava a rejeição e a desconfiança da população à classe política institucional do país. Além disso, o Chile exigiu um novo texto constitucional: em outubro de 2020, em um plebiscito realizado no país, 78% do eleitorado votou “sim” para uma nova Constituição. 

Pouco tempo depois, em maio de 2021, a população foi às urnas para escolher os 155 representantes para o conselho que ficaria responsável pelo texto da nova Constituição. O grupo foi formado, na sua maioria, por setores do campo da esquerda, com igualdade entre mulheres e homens no conselho.

Do ponto de vista da representatividade política, um dos herdeiros dos protestos de 2019 foi o ex-líder estudantil Gabriel Boric, que se tornou o mais jovem presidente da história do país ao vencer as eleições gerais, no final de 2021, contra José Antonio Kast, candidato do Partido Republicano e defensor do modelo neoliberal de Pinochet. Boric assumiu a presidência em março de 2022.

O Chile vivia, ali, a possibilidade de realizar não apenas uma mudança de paradigma na sociedade do país, mas um acerto de contas com o passado. Diferentemente de outros países do continente, como Brasil e Argentina, o Chile passou por um processo de transição democrática, como dito, sem alterar pontos importantes do texto-base do Estado, datado dos tempos repressivos de Pinochet.

Mudança de direção

Entretanto, em um referendo realizado em setembro de 2022, a proposta da nova Constituição chilena foi rejeitada por 62% da população. Ela continha 178 páginas, 388 artigos e 54 normas transitórias. Estabelecia, entre outros pontos, a paridade entre homens e mulheres, bem como Estado de Bem-Estar Social no Chile. Vale destacar que a Constituição chilena, de 1980, determina expressamente que o Estado pode ser dispensado sempre que o setor privado possa exercer uma atividade.

Outro ponto importante da proposta rejeitada foi o fato de pretender definir o Chile como um “Estado Plurinacional e Intercultural”, reconhecendo 11 povos de origem indígena no país. O tema foi explorado pela extrema direita chilena, à época, sob o argumento de que a medida poderia fragmentar o país. A Constituição chilena ainda em vigor não reconhece, por exemplo, os direitos da população indígena.

Após a rejeição, as elites políticas do Chile tiveram que articular um acordo para viabilizar uma nova convocação da população às urnas, no que ficou conhecido como “Acordo para o Chile”. Esse acordo estabeleceu, por exemplo, doze princípios basilares que deverão constar no texto futuro, como a definição de que o Chile é uma República Democrática e um Estado Unitário, por exemplo.

O pacto, porém, não foi assinado pelo Partido Republicano, justamente o vencedor das eleições do último domingo. O argumento da extrema direita era o seguinte: as prioridades dos chilenos estavam em uma agenda de segurança, resolução de problemas com imigração e na economia; e não nas noções programáticas que foram acordadas.

É aqui que entra uma das chaves para se compreender a vitória da extrema direita nas eleições de domingo, como explica Talita São Thiago Tanscheit, doutora em Ciência Política pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e pesquisadora do Departamento de Política e Governo da Universidad Alberto Hurtado, do Chile.

Direita, volver

De acordo com Tanscheit, a vitória da extrema-direita se deve à capacidade do partido Republicano (e do seu líder, José Antonio Kast) de aproveitar oportunidades políticas. O partido foi fundado por Kast – cujo pai tinha ligações com o partido nazista alemão- em 2019 e, nas eleições de domingo, teve um crescimento de 237,1% nos votos, em comparação à eleição para deputados, realizada em 2021.

Segundo a pesquisadora, duas agendas da direita se impuseram e não foram bem endereçadas pela de esquerda: a segurança pública e a questão da imigração.

“Não há atores, no sistema político, que questionem essas agendas de forma relevante. Pelo contrário: Gabriel Boric incorporou essas agendas nos últimos meses, aprovando um conjunto de leis e políticas manodura extremamente perigosas para o país, como excludente de ilicitude, por exemplo”, explica Tanscheit.

O Chile vem vivendo, nos últimos tempos, os reflexos de uma crise migratória que envolve países como Venezuela, Peru e Bolívia. No início deste ano, Boric aprovou a Lei de Infraestrutura Crítica no país, que permite que as Forças Armadas assumam a proteção do Chile, em caso de “ameaça grave ou iminente”. A questão é especialmente sensível para o campo progressista, mas foi adotada após pressão da direita. 

No primeiro trimestre de 2023, em uma pesquisa realizada pelo instituto CEP, 60% dos entrevistados do Chile disseram que “o combate à delinquência, roubos e assaltos” deveria ser a principal prioridade do governo, e a maioria apontou o fenômeno como resultado da imigração. O tópico ficou à frente de saúde (32%) e aposentadorias (31%), pontos que eram, justamente, prioridade máxima nos protestos de 2019.

Em 2022 – primeiro ano do governo Boric -, a taxa de ocorrências policiais no Chile registrou um aumento de 44% em comparação a 2021, segundo números da Secretaria de Prevenção ao Crime, do Ministério do Interior chileno. Roubos e homicídios cresceram, respectivamente, 63% e 33%.

Além disso, a inflação é outro fator que entra na conta de insatisfações da população chilena: segundo o Instituto Nacional de Estatísticas (INE), a inflação no Chile fechou o ano passado em 12,8%. Esse é o percentual mais alto dos últimos trinta anos. Mais recentemente, porém, segundo dados divulgados na última terça-feira 9, a inflação no país parece dar sinais de queda, tendo alcançado, para os últimos 12 meses, o percentual de 9,9%.

A pesquisadora aponta que o “cansaço” pode ser visto como uma característica recente da sociedade chilena. “De 2019 para cá, há um cansaço na sociedade, porque a gente tem que pensar que é uma sociedade que vem de um estallido social, que é um processo muito intenso e muito marcante (para o bem e para o mal), porque foi muito violento, de muitas violações aos direitos humanos”, explica. Ela destaca, ainda, que a população foi chamada várias vezes para ir às urnas, desde 2019.

Nesse contexto, o panorama político chileno pode ser avaliado, também, pela deterioração – anterior, aliás, a 2019 – da confiança nas instituições políticas. Para Tanscheit, existe “um mal-estar generalizado com a política, com a forma como a política se organiza no país e com a ausência de líderes enraizados socialmente”. 

Como consequência da falta de enraizamento social, as propostas apresentadas pela representatividade vigente – notadamente, do campo progressista chileno – vêm sendo vistas como incapazes de encarar os problemas da realidade material da maior parte da população A questão foi tratada por Boric, ao comentar o resultado da eleição do domingo, quando disse que “o processo anterior fracassou, entre outras coisas, porque não soubemos escutar quem pensa diferente”. 

Tanscheit observa, também, que a primeira Assembleia Constituinte refletiu o momento que o Chile vivenciava. “Principalmente, com relação à maioria de independentes que foi eleita, de pessoas sem experiência política. E as pessoas de esquerda que não eram independentes tiveram dificuldades de liderar o processo”, pondera. Entretanto, explica, “foi um processo muito boicotado, também”, principalmente por setores da direita tradicional e pelos órgãos tradicionais da imprensa chilena.

A especialista analisa que a sucessão de vitórias da esquerda chilena – plebiscito para aprovação da Constituição, maioria de esquerda no primeiro processo constituinte, além da eleição de prefeitas de esquerda e do próprio Boric – fez com que o campo progressista chileno internalizasse a ideia (“ingênua”, de acordo com a especialista) de que seria natural vencer as disputas políticas subsequentes. O que não foi o caso. “Faltou uma conversa maior com o povo, com a população”, assinala Tanscheit.

Apesar de tudo, ainda há um longo caminho até a votação final do texto constitucional. É preciso pesar, como afirma a pesquisadora, que plebiscitos – como o que acontecerá em dezembro – são distintos de processos de eleição em pessoas. 

Essa condição não exclui, porém, o fato de que os principais derrotados da eleição do último domingo, na visão de Tanscheit, são “o centro político e a direita tradicional”. Em um cenário parecido com o legislativo brasileiro, “você tem, por um lado, uma ultradireita forte e, por outro lado, uma centro-esquerda forte, também, só que minoria. E sem muito espaço para negociar e para se impor”, compara a pesquisadora.

Até o final do ano, o Chile saberá o resultado de um processo constituinte que, por mais paradoxal que possa parecer, será liderado pela extrema direita, para rever a Constituição de um dos mais autoritários ditadores da América Latina.

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