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Como e por que o estupro é utilizado como arma de guerra

Apesar de não ser uma recente, a punição da violência sexual em guerras somente começou a ser analisada após a Segunda Guerra Mundial. Em entrevista, a especialista em Direito Penal Jessika Aguiar analisa o tema

Refugiados ultrapassam fronteira entre a Ucrânia e a Romênia em meio à guerra. Foto: Armend Nimani/AFP
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Desde o início da invasão russa, o governo ucraniano tem acusado russos de violência sexual contra mulheres em cidades ocupadas.

Nesta segunda-feira 30, o Ministério Público ucraniano anunciou o primeiro julgamento de violação sexual ocorrido durante o conflito. O acusado é Mikhail Romanov, um soldado das Forças Armadas Russas.A acusação envolve assassinato e violência sexual em grupo, que teriam acontecido em um vilarejo ao redor de Kiev, capital do país.

Segundo o relato da vítima nas redes sociais, Romanov e outras militares russos teriam invadido uma casa e matado o seu dono. Após o assassinato, a esposa do homem teria sido estuprada várias vezes.

Denúncias perante órgão internacionais, como a Cruz Vermelha Internacional corroboram com esses relatos.

Recentemente, uma diplomata britânica também registrou as alegações ucranianas. Barbara Woodward, embaixadora do Reino Unido na ONU, afirmou a rede Sky News que há evidências de que a Rússia estaria cometendo quatro das seis graves violações estipuladas pelo Conselho de Segurança contra crianças em tempos de guerra.

O corpo feminino, inserido numa sociedade que se estrutura no patriarcado, não é só da mulher. É um corpo político, um campo de batalha

A violação de mulheres e crianças, contudo, não é uma exclusividade do conflito russo. Historicamente, a violência sexual sempre foi utilizada como tática de guerra e pôde ser observada em outros conflitos, como no Tigré (2020-), na Nigéria, na Guerra da Bósnia (1992-1995) e no Congo (1998-2003).

O estupro de guerra tem sido entendido por especialistas como uma forma de violência contra o indivíduo, considerado inferior por sua etnia, nacionalidade, gênero ou religião. Além disso, a violência sexual pode ter diversas motivações, como purificação étnica, espólio de guerra e genocídio, provocando desonra não só contra a vítima, mas também a família e a sociedade que pode perdurar através de gerações.

Durante a guerra civil em Ruanda, na década de 1990, a ONU estima que entre 250 e 500 mil mulheres foram violentadas por milícias.

Em 2014, na Nigéria, a violência sexual foi usada contra mulheres e crianças como tática de guerra pelo grupo extremista Boko Haram.

Vídeo divulgado pelo Boko Haram mostra meninas sequestradas (Foto: Reprodução)

Em 2021, a ONU apurou que tropas da Etiópia e da Eritreia estupraram centenas de mulheres e meninas na região sob conflito do Tigré. Algumas das vítimas foram escravizadas sexualmente e sofreram mutilações, de acordo com um relatório da Anistia Internacional.

Apesar de não ser um assunto novo, a punição da prática somente começou a ser analisada após a Segunda Guerra Mundial. Somente após 1998, a violência sexual em contexto de conflitos foi tipificada como crime contra a humanidade. E apenas em 2014, o Tribunal Penal Internacional considerou a prática como arma de guerra, seja para recompensar os combatentes ou coagir a população vítima.

Para entender melhor o contexto da utilização do estupro como arma de guerra, CartaCapital entrevistou Jéssika Aguiar, especialista em direito penal e representante da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima.

Confira a seguir.

CartaCapital: Como os organismos internacionais têm percebido a violência sexual em situação de conflito?

Jéssika Aguiar: Já não é de hoje que os organismos internacionais, especialmente aqueles de proteção dos direitos humanos, vêm o estupro em contextos de guerra como um crime contra a humanidade.

Há entendimentos do Tribunal Penal Internacional que o reconhecem, ainda, como crime de guerra, crime de tortura ou crime de genocídio.

Esse entendimento foi firmado muito em decorrência daquilo que se verificou nos casos de Ruanda e da antiga Iugoslávia, oportunidades em que foi formado um tribunal ad hoc no TPI que se debruçou sobre a matéria.

CC: Nos conflitos na Ucrânia, já se pode falar em violência sexual usada como arma de guerra?

JA: Atualmente, o que a gente tem visto no caso da Ucrânia, por exemplo, é que já existe uma preocupação dos organismos com a possiblidade de ocorrência desses crimes. Ou seja, já se ouve falar de forças-tarefas preocupadas de colher provas e depoimentos de sobreviventes relacionados com os casos de estupros. Ou seja, já é sabido pelos organismos internacionais que estupro pode ser usado como arma bélica. Até porque, num passado recente, envolvendo o mesmo exército Russo, a Human Rights Watch denunciou situações em que o exército russo havia violado mulheres chechenas no conflito entre os dois países nos anos 90 e início dos anos 2000.

Por todo esse histórico é que as organizações internacionais hoje, quando avistam a ocorrência de conflitos dessa proporção, já se acende o alerta para esse tipo de barbárie acontecer.

Por isso as organizações já tentam se antecipar, na medida do possível, na proteção e suporte das vítimas, até porque outra característica muito evidente nos conflitos recentes é, também o ataque a civis. Isto é, não se tem visto o embate entre instituições militares estatais, mas um direcionamento claro contra a população civil como alvo.

Em Ruanda e na ex-Iugoslávia, no território que hoje é a Bósnia-Herzegovina, o objetivo era claro: o genocídio de grupos éticos rivais

CC: Existe algum estudo que aponte a origem dessa prática? É uma estratégia moderna?

JA: Eu diria que desde sempre o estupro foi usado em contextos de guerra de formas diferentes. Aliás, um parêntese necessário: acho que, antes de mais, é preciso dizer que o estupro não é, de forma alguma, uma prática moderna, quer ele em contextos privados ou públicos, como em situações de guerra. O estupro é uma demonstração de força, autoridade e imposição de vontade, majoritariamente de homens contra mulheres, fato que reflete a estrutura social patriarcal na qual estamos todos inseridos.

O corpo feminino, não é de hoje, é um instrumento político de manifestação de vontades. Assim o é desde o colonialismo, por exemplo, quando se viu uma população invasora violar mulheres de povos nativos. essa prática nada mais é do que o reflexo da própria da hierarquia social que vivemos.

Todavia, nesse contexto que estamos a falar, o que nos indicam os estudos – e aqui cito um interessantíssimo ensaio produzido pela advogada Fernanda Moura Muniz, enquanto pesquisadora da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa – é que depois da Segunda Guerra Mundial, o que se constatou foi uma ressignificação do uso do estupro inserido na estratégia bélica.

Em Ruanda e na ex-Iugoslávia, no território que hoje é a Bósnia-Herzegovina, o objetivo era claro: o genocídio de grupos éticos rivais. Para tanto, as mulheres eram o alvo, tanto como forma de desmoralizar o inimigo, como também para imprimir a criação de toda uma geração nascitura sem os traços étnicos daqueles tidos como rivais.

Sem trégua. A Rússia continua a reduzir a Ucrânia a escombros, enquanto Putin ameaça o Ocidente com uma guerra nuclear – Imagem: Genya Savilov/AFP e Ministério da Defesa da Rússia

CC: Em contextos de guerra, o estupro é incentivado pelos governos ou parte individualmente dos combatentes?

JA: Depende. Nesse campo, podemos ter de tudo. Há casos que o uso do estupro é deliberadamente uma política da guerra. Por exemplo, como eu citei antes, em Ruanda o objetivo era claro: eliminar uma etnia daquela sociedade. E isso era uma política daquela guerra, ou seja, mediante o estupro das mulheres se buscava tanto a limpeza étnica, bem como a propagação de doenças infectocontagiosas, como HIV.

Todavia, é possível que o estupro em cenários de guerra não decorra exclusivamente de uma política de guerra estabelecida, mas também do aproveitamento e da exploração de uma parcela da população que se encontra vulnerável, por meio da demonstração de força e subjugação de vontades. Ou seja, podemos também falar de um contingente ou de um grupo de combatentes que decida abusar da população subjugada.

Mas, na minha opinião – e aqui pode ser que a jurisprudência do TPI não reflita o meu posicionamento – se essa prática acontece quer porque isso advém de uma estrutura militar masculinizada, quer porque parte de uma política bélica, ou porque um grupo de combatentes decidiu, continua a ser um crime de guerra e uma violação das legislação internacional de proteção dos Direitos Humanos e do Tratado de Roma.

Desde a Segunda Grande Guerra, houve uma mudança estratégica no ‘modelo’ de guerrear

CC: Um dos casos mais emblemáticos de estupro em guerras ocorreu na extinta Iugoslávia. Inclusive, tem-se a notícia da criação de “campos de estupro”.

JA: A Fernanda Moura Muniz, que eu citei anteriormente, fez uma análise in loco no atual território da Bósnia-Herzegovina, com a revisitação dos locais, levantamento de depoimentos e de documentação histórica, além da análise dos julgados do TPI no caso.

Naquele conflito em especial, uma das maiores ambições dos perpetradores era a limpeza étnica de parte da população, bem como a humilhação do povo vencido. Existia, de fato, uma campanha declarada de limpeza étnica por parte dos sérvios contra a parcela da população croata, muçulmana e bósnia.

Todavia, para além disso, ela também verificou que as “violações sexuais frequentemente aconteciam na frente de outras pessoas, que podiam ser parentes da vítima, – principalmente do sexo masculino – ou membros do grupo estuprador, buscando reforçar a humilhação da mulher violada”.

Isso porque através do estupro de mulheres (ou crianças), se consegue atingir a sociedade de diversas formas. Isto é, considerando o que falamos acima, que numa sociedade patriarcal, essencialmente masculina, violar uma mulher é o mesmo que atingir toda a sociedade. O corpo feminino, inserido numa sociedade que se estrutura no patriarcado, não é só da mulher. É um corpo político, literalmente um campo de batalha.

Os tais campos de concentração tinham como objetivo a gravidez forçada de mulheres, buscando exclusivamente provocar nascimento de crianças sérvias e sustentar mais uma forma de humilhação e intimidação.

CC: Como os estupradores podem ser responsabilizados?

JA: Nos casos dos crimes de guerra e aqueles contra a humanidade, o julgamento é feito pelo Tribunal Penal Internacional, em Haia. O processo não é dos mais simples e a fase de julgamento é bastante longa. Existem regras bastante específicas de competência do Tribunal relativamente aos países signatários do Estatuto de Roma.

Em geral, é bastante difícil a colheita de prova, por isso que hoje, do meu ponto de vista, as instituições já acendem os alertas e começam desde logo, e na medida do possível, a catalogar as ocorrências dos crimes de guerra.

Como conflitos dessa magnitude, em geral e infelizmente, podem durar anos, as organizações de Direitos Humanos, as ONGs de apoio e proteção das vítimas, além do próprio TPI já têm começado a sua participação antecipada, é o que se tem visto na Ucrânia, por exemplo.

Existem várias notícias e relatórios de ONGs a relatar os crimes de guerra ali ocorridos, como o trabalho já divulgado da Human Rights Watch.

Mas, como eu disse, é um processo complicado, que envolve inúmeras questões de direito internacional e direito penal internacional, especialmente no que diz à sua competência, porque, por exemplo, nem a Rússia nem a Ucrânia são signatárias do Estatuto de Roma.

CC: Além do estupro, existem outras estratégias contra as vítimas de conflitos?

JA: Desde a Segunda Grande Guerra, houve uma mudança estratégica no “modelo” de guerrear. Ou seja, já não se vê aquele cenário medieval de um exército enfileirado e armado de um lado contra outro exército. A estratégia militar hoje conta com a invasão de cidades, e a população civil como alvo central. Isto é, embora o Estatuto de Roma tenha tentado limitar o que pode e o que não pode ocorrer.

Um conflito armado, especialmente contra vítimas neutras e civis, é certo que um cenário de guerra é terra de ninguém. Ou seja, basta abrir os jornais para vermos a quantidade de relatos desesperantes que Ucranianos, Somalis, Iêmen, têm pra nos contar.

As pessoas são submetidas a torturas, trabalhos forçados, condução ao tráfico de seres humanos, feitas prisioneiras de guerra. Sabemos que o exército russo cortou energia elétrica e abastecimentos de água em áreas exclusivamente residenciais por cidades onde passou, isso, por isso só, já configura uma violação e um ataque às vítimas civis.

No caso das mulheres em específico, o que mais se vê são as violações, a condução à prostituição, a realização de trabalhos domésticos forçados, a separação de seus filhos sem qualquer justificativa.

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