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Chicago usa Bienal de Arquitetura e reflete sobre racismo e desigualdade

Cidade acolheu os primeiros arranha-céus, os gângsteres de Al Capone e o promissor Obama

O Crown Hall, de Mies van der Rohe, de 1956, soterrou os lendários Mecca Flats
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O Crown Hall, no Instituto de Tecnologia de Illinois, em Chicago, é um ícone da arquitetura moderna. Desenhado por Mies van der Rohe e concluído em 1956, é uma caixa de vidro cristalino emoldurada em aço preto fino, simétrica, elevada acima do solo, alcançada por uma escadaria central cerimonial. É o ápice do puro estilo abstrato disciplinado que Mies levou da Alemanha para os Estados Unidos. 

Quando veio a reação a essa arquitetura, na década de 1970, o americano Charles Jencks, que vivia em Londres, o homem que primeiro atribuiu o rótulo de “pós-moderna” à arquitetura, destacou o Crown Hall tanto pela falta de linguagem decorativa familiar quanto pelo absurdo de fazer uma escola de arquitetura (o que ele é) parecer um templo.

Mas nesse debate estilístico não é citado o Mecca Flats, prédio que o Crown Hall substituiu. Era um edifício de apartamentos com pátio, originalmente um hotel, que se tornara o centro da vida afro-americana em Chicago. Ele inspirou uma canção de blues de Jimmy Blythe e um longo poema de Gwendolyn Brooks. Foi demolido em nome da “renovação urbana”, após uma década de luta para salvá-lo. “Uma favela negra”, dizia a revista Harper. “Fique olhando”, disse um dos moradores enquanto ele era demolido, “muitas pessoas que moravam aqui vão morrer de tristeza.” A história do Mecca Flats é emblemática das lutas pelo poder, muitas vezes com motivo racial, que moldaram Chicago. A intenção de Yesomi Umolu, diretora artística da Bienal de Arquitetura de Chicago neste ano, é representar a “miríade de histórias” que fazem uma cidade – como a de Mecca.

Chicago tem várias reivindicações à fama arquitetônica e urbanística – como o berço do arranha-céu, por fertilizar os talentos de Louis Sullivan e Frank Lloyd Wright, além de Mies van der Rohe, e como a plataforma de lançamento do movimento City Beautiful, que visava combater a miséria urbana com parques e monumentos. Sob o título “…E outras histórias parecidas”, a Bienal de Yesomi Umolu tem por objetivo destacar as forças sociais e políticas por trás dessas grandes obras.

A antiga biblioteca, de vidros Tiffany. Foto: Istockphoto

Enquanto Chicago “sempre foi um local de imaginação radical em relação à arquitetura”, como diz Yesomi Umolu, “não há forma arquitetônica sem história e narrativa”. Para ela, “é a cidade americana por excelência”. Foi construída em terras tiradas de indígenas americanos e seu plano de ruas em grade reflete os padrões dos estudos de terreno que fizeram parte dessa apropriação. Ela enriqueceu com produtos das pradarias. 

Chicago acolheu afro-americanos que migravam dos estados do Sul, também segregou seus bairros e dificultou o acesso à propriedade de residências, que era mostrada aos brancos como o ideal da cidadania americana. Lá se praticou o redlining, processo em que os serviços bancários e outros eram negados aos distritos habitados por minorias. “Não se pode falar de Chicago a não ser pelas lentes da segregação”, afirma Yesomi Umolu.

Acolheu os primeiros arranha-céus, os gângsteres de Al Capone e o promissor Obama

Ao mesmo tempo, um lugar construído pelo poder bruto, com a desigualdade e a exploração incorporadas ao tecido, pode – no que é um paradoxo das cidades em geral – tornar-se um refúgio para a liberdade, a oportunidade e a tolerância. Chicago, ressalta a diretora artística da Bienal, foi um centro do movimento pelos direitos civis, promoveu os primeiros movimentos trabalhistas e lançou a carreira política de Barack Obama. A cidade, outrora conhecida por prefeitos arrogantes, homens brancos, alguns deles à beira da criminalidade, hoje é administrada por Lori Lightfoot, negra e gay. A Bienal de Yesomi Umolu, que acaba de ser inaugurada, combinará às vezes histórias sombrias com reações inspiradoras a elas.

Yesomi cresceu em Londres, estudou arquitetura na Universidade de Edimburgo e trabalhou em escritórios britânicos antes de se tornar curadora de arte contemporânea e mudar-se para os Estados Unidos. Vindo agora da direção de arte, ela tem uma perspectiva diferente daquela da profissão de arquiteta. Sua Bienal será menos uma vitrine de obras singulares de indivíduos qualificados do que uma tentativa de “amplificar” o que ela chama de “prática socialmente engajada”, que pode ser tanto de artistas ou ativistas quanto de arquitetos. Ela dá como exemplo a Sweet Water Foundation, que transformou um quarteirão da cidade na Zona Sul de Chicago em uma fazenda comunitária, com oficinas, salas de aula, galeria de arte e salão de reuniões.

O Auditorium Building, de 1899, por Louis Sullivan.

O local principal da Bienal é o Chicago Cultural Center, uma antiga e magnífica biblioteca no coração da cidade. Aqui haverá um modelo em grande escala da casa rústica de um operário tradicional de Chicago e “uma instalação de vídeo multicanal” sobre “as maneiras pelas quais as comunidades se fundem”. Haverá pisos de cerâmica dos Mecca Flats, descobertos durante as recentes reformas do Crown Hall, cujas cores revivem um edifício lembrado por fotografias monocromáticas. Haverá displays de São Paulo, Vancouver e Johannesburgo, cidades com problemas comparáveis, mas diferentes dos de Chicago.

A Bienal também se manifestará em outros locais, por exemplo, recuperando um antigo prédio de escola primária, e pretende ter alguma influência além dos quatro meses de duração. Está promovendo uma iniciativa do Mass Design Group, criadores do muito elogiado Memorial Nacional à Paz e à Justiça, para criar um memorial às vítimas da violência armada. Uma versão preliminar, composta de objetos pessoais doados pelas famílias das vítimas, estará em exposição em Chicago.

A Bienal de Arquitetura de Chicago deve ser, em outras palavras, uma expressão de valores liberais aplicados ao domínio da construção de cidades tão pura quanto se poderia esperar. Na atual política polarizada, em que o mesmo país pode produzir um presidente Trump e uma prefeita Lightfoot – conflito às vezes enquadrado como um de grandes cidades versus o resto –, é extremamente óbvio onde Yesomi Umolu e a Bienal estão. Ela não afirma ter todas as respostas – o que, como as perguntas são vastas, é realista –, mas pelo menos quer apontar algumas verdades básicas sobre o modo como as cidades são formadas e oferecer exemplos de como responder.

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